Diz ele que "no século 20, o último remodelador expressivo foi o socialista Mitterrand e, entre suas obras, vemos o arco de La Défense e o museu d'Orsay." Aqui, o colunista cita o último, e não fala do primeiro, no mesmo século, que abriu o caminho e sem o qual Mitterrand, mesmo se realizou muito, não teria conseguido fazer grande coisa.
Ora, o primeiro foi André Malraux no governo de Charles de Gaulle. Sendo que hoje "a grande obra" de Mitterrand, muito mais do que "La Défense" ou o "Museu d'Orsay", como diz Karnal - e mesmo a Ópera da Bastilha, o Palais-Royal ("Les Deux Plateaux"), o Parc de la Villette, o Grande Louvre, o Instituto do Mundo Árabe e o Ministério da Economia e das Finanças - é a Biblioteca nacional da França (BnF), a maior deste país e umas das mais importantes do mundo.
Malraux, o autor de O Museu imaginário (ensaio editado em 1947, e depois em As Vozes de Silêncio em 1951), foi o primeiro a ocupar um órgão oficial de cultura na França. O seu "ministère des Affaires culturelles" agrupava artes, letras, arquitetura, arquivos e cinema. Deu um impulso totalmente novo à restauração e proteção dos monumentos, sítios históricos e bairros inteiros. Criou o inventário das riquezas artísticas, estimulou e descentralizou o teatro, multiplicou os locais de exposições, ofereceu "securité sociale" aos escritores, reformou o ensino de arquitetura e música, criou a "Caisse Nationale des Lettres" e o Centro Nacional de Arte Contemporânea", favoreceu as artes vivas, museus, música e cinema ("Art et Essai"). André Malraux fundou a Bienal de Paris, apoiou Matisse, Braque, Picasso, Giacometti, encomendou obras públicas a André Masson e a Marc Chagall, enviou a Mona Lisa aos Estados Unidos, não parou de fazer a cultura francesa ser divulgada no mundo inteiro. Se intervenção do Estado é bom ou ruim para a criação cultural ou artística, esse é outro assunto. O fato é que até hoje ninguém fez mais pela "imagem da capital francesa" e sua cultura que, aliás, continua colhendo os seus frutos.
O problema de certas visões exteriores é que elas se fundam em estereótipos antigos
O colunista diz ainda (e com que segurança!) que "Paris é uma das maiores concentrações de idosos isolados em apartamentos". Diz ele que "aqui se descobre que as pessoas morrem, pelo cheiro". Não sei em que estudo recente se apoiou e onde ouviu tamanho absurdo. Ou, se criou esse clichê apenas porque coisa parecida aconteceu com o seu professor na USP, Gérard Lebrun, filósofo e historiador francês que faleceu em Paris, não exatamente "idoso" mas de maneira precoce pode-se dizer, aos 69 anos. Aliás, Danièle Lebrun, sua irmã, é uma conhecida atriz de quem os franceses e eu gostamos muito.
Certo, Paris concentra (assim como todas as grandes metrópoles) pessoas desacompanhadas, de todas as idades, muitas realmente solitárias e isoladas. Os idosos, porém, há 13 anos - justamente após a canícula de 2003 - hoje são tratados, na capital e na França inteira, talvez como em nenhum outro país do mundo.
Serviços oficiais e extraoficiais especiais, vigilância reforçada de todos os setores, associações, ONGs, benevolência, "securité sociale", SAMU social (sobretudo no inverno), todas as camadas da sociedade francesa estão conscientes e agem individual e coletivamente contra o isolamento. Hoje, praticamente todos os idosos na França são seguidos de maneira obrigatória, recebem telefonemas e visitas diárias (especialmente em caso de crises climáticas), ajudas domiciliares subvencionadas pelo governo (por meio de suas regiões e prefeituras), controle médico e refeições.
Somos testemunhas disto, não apenas com familiares mas com amigos em Paris e na província. O trágico filme "Amor" (Amour, 2012, Michael Haneke) do qual o colunista diz lembrar a propósito deste assunto, e que trata de um casal de professores aposentados de música da grande burguesia, não tem absolutamente nada a ver com a questão. Verdade seja dita, muito ao contrário.
O problema de certas visões exteriores acerca da Europa, e da França em particular, é que não raro elas se fundam em estereótipos antigos, mas tenazes, aos quais escapam as evoluções extremamente rápidas e recentes de suas sociedades.
Até a próxima, que agora é hoje e tomara o Brasil seguisse o exemplo do Welfare state (Estado de bem-estar social), modelo de governo que por felicidade sobrevive aqui, ainda que a duras penas!
Post relacionado
? Arte não se ensina