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Arte, aqui e agora

É possível uma catedral com alma?

Hoje, dia 17, às 18h50, hora do início do incêndio que atingiu a Catedral de Notre Dame de Paris há dois dias, todos os sinos da França tocarão em homenagem a este monumento que simboliza a história e a identidade do país. A emoção suscitada por este drama atravessou fronteiras, transformando-se em evento planetário. Como é possível que um edifício, assim como um ser humano, possua alma?

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Por Sheila Leirner
Atualização:

Notre-Dame de Paris, antes do incêndio de 15 de abril. Foto: Skouame

Chegam testemunhos, reações e apoio do mundo inteiro. Todos, sem exceção, foram tocados em seus corações vendo a catedral em fogo e a torre que despencava como um déjà-vu do 11 de setembro. Não há comparação possível, não houve vítimas felizmente, porém a dor foi imensa, como se o monumento não fosse inanimado e estivesse de fato morrendo.

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Não constituiu surpresa, entretanto, que alguns irresponsáveis e perigosos impostores, políticos e sites fraudulentos (estes, sim, deveriam responder em Justiça) instrumentalizassem o drama com teorias conspirativas e fake news tanto para perturbar, quanto para confirmar suas ideologias e reafirmar o seu parco poder de "influenciadores" nas redes. Um destes imbecis, xenófobo da extrema-direita, por exemplo, tentou "provar" que as "igrejas estão sendo queimadas na França para darem lugar a mesquitas". É triste ver quantas pessoas curtem lorotas e infâmias, antes de verificá-las.

Outros idiotas falaram em decadência do Ocidente, colocaram a França no "terceiro mundo", sugeriram que a torre "simbolizava a civilização francesa" e até mesmo "toda a cristandade". Isto sem falar do EI, que, evidentemente, comemorou o evento. A verdade é exatamente oposta: depois do choque, a mobilização, as doações, a vontade de reconstrução e o projeto do futuro prometido pelo presidente Macron, provaram justamente que o Ocidente e as sociedades democráticas solidárias nada têm a se reprovar. São, novamente, um grande exemplo civilizador de resiliência e perseverança.

Porque tanta emoção?

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Porque todos nós, franceses ou não, sentimos que uma parte de nós mesmos partia em fumaça? Porque tanta emoção? Porque essa solidariedade e compaixão mundializadas? Penso que as raízes cristãs da humanidade não explicam tudo. Notre Dame, todos sabemos, é outra coisa. É por onde a história da França passou durante oito séculos, o próprio símbolo da sua identidade.

De Joana d'Arc a Henrique IV, de Luís XIV a Napoleão, de De Gaulle a abbé Pierre, além de representar fatos e personagens, este templo é um "amontoado indivisível de emoções", como dizia Victor Hugo. Em seu livro Notre Dame de Paris, ele escreveu: "Na forma de impressão, o pensamento é mais imperecível do que nunca; ela é volátil, indescritível, indestrutível."

Cristã, mas igualmente republicana, no final da Segunda Guerra a catedral testemunhou a Liberação de Paris e o Te Deum para a Resistência. Ela uniu ricos e pobres, rebeldes e patriotas, religiosos e ateus. Foi e continua sendo - como compreendeu Victor Hugo - um "monumento do povo", mais do que do clero ou dos poderosos. O significado espiritual de Notre Dame não impede a vivência humana de seus espaços, como as inesquecíveis paixões de Quasimodo, Esmeralda e Frollo no romance que foi adaptado tantas vezes. Quem não lembra de O Corcunda de Notre Dame, filme de Disney, e o de Jean Delannoy (1956) com Anthony Quinn? Não vi a segunda adaptação de 1939 dirigida por William Dieterle com Charles Laughton, muitos acham que foi a melhor.

Este monumento é um assunto sem fim. Mas ele possui uma alma e sofremos tanto com os seus ferimentos, sobretudo porque neste mundo conflituoso que vivemos, em meio a redes sociais, governos estranhos, fake news, fatos efêmeros, mídia onipresente, é um oásis infinito. Um lugar onde o tempo não existe porque ele é de todos os tempos; onde a religião, cultura, história e imaginação se misturam porque ele é tudo isso simultaneamente; e onde arte, beleza e harmonia valem tanto quanto todos os princípios, valores morais e políticos que nos constroem fora dele. Até a próxima, que agora é hoje e o nosso oásis, se for como quer Emannuel Macron, só daqui a cinco anos!

Visita imersiva na Catedral Notre Dame de Paris, antes do incêndio

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