Décio Trujilo
Quando aquela dupla de sujeitos que hoje a gente chamaria de malas-sem-alça decidiu criar um cordão carnavalesco no Bexiga dos anos 20, é claro que eles não imaginavam que a brincadeira viraria coisa séria nem que duraria para sempre. O que o Livinho e o Benedito Sardinha, dois gozadores de primeira que viviam atazanando os amigos, queriam, era só provocar a turma do time do Cai-Cai e arrumar motivo para esticar as batucadas para além da beira dos campos de futebol. Sem saber, criaram uma das mais importantes instituições da cultura popular de São Paulo, a escola de samba Vai-Vai, que nesta sexta-feira completa 80 anos. Sim, num 1º de janeiro, provavelmente depois de uma noite de algazarra, cachaça e batucada para celebrar a chegada da década de 30.
De lá para cá, o Vai-Vai entrou na vida de muita gente, e muita gente entrou na história do Vai-Vai (não estranhe o uso do masculino, pois foi assim que aprendi e era como se usava no tempo dos cordões): Geraldo Filme, Henricão (primeiro compositor da escola e primeiro Rei Momo negro de São Paulo), Pato N'água, Osvaldinho da Cuíca, Almir Guinetto, Beth Carvalho, Mário Sérgio do Fundo de Quintal, Ulysses Cruz. Mas a força da Bela Vista, é claro, foi construída mesmo por pessoas como o Livinho e o Sardinha, gente como o Célio, motorista da Secretaria da Justiça, a Denize, que trabalha na Assembleia Legislativa, a Neide, caixa de supermercado em Santo Amaro, o Zé Paulo, mecânico na zona leste, e um certo office-boy que comia poeira na Cachoeirinha e engolia fumaça no centro lá pelos anos 70 e hoje preside a escola, o Thobias.
Cada torcedor tem uma história com o Vai-Vai que vale um livro. No meu caso, a relação foi nascendo aos poucos. Como menino corintiano, era meio inevitável. Nos começo dos anos 70 havia muita coisa em comum entre Vai-Vai e Corinthians: ambos alvinegros, ambos curtindo uma fila de títulos, ambos sem-teto (aliás, ainda são). Mas foram dois episódios em 1976 que selaram nosso vínculo. O primeiro, no carnaval, minha estréia na São João, com o lindo samba em homenagem ao genial Solano Trindade, as alas de passo marcado vestidas de corte francesa, a bateria inconfundível e, claro, mais um título perdido para o Camisa (olha o masculino aí, de novo). O segundo capítulo foi em dezembro, na invasão corintiana ao Maracanã, quando os batuqueiros do Bexiga sustentaram o samba que embalou a festa da Fiel.
Com o tempo a gente aprende que samba e futebol têm vários pontos em comum, mas não são a mesma coisa. O tratamento ao adversário, por exemplo. As escolas são muitas, mas o samba é um só e é de todos. Sambistas são adversários uma vez por ano, parceiros de luta sempre e inimigos nunca. Por isso, quando uma escola faz 80 anos, como o Vai-Vai está fazendo, a festa é de todos porque representa a permanência do samba, que agoniza pelo menos desde 1979, segundo Nelson Sargento, mas não morre.
FESTA NA VILA TAMBÉM
Não é data redonda, como no caso do Vai-Vai, mas a Nenê de Vila Matilde também está fazendo aniversário, 61 anos. É outro caso de réveillon animado, mas essa história o seu Nenê está aí para contar de própria voz. O fato é que o pessoal da Vila acordou cheio de gás no 1º de janeiro de 1949 e criou essa supercampeã especialista em levantar arquibancadas aqui e no Rio. Sim, a Nenê desfilou na Sapucaí, foi em 1985, no desfile das campeãs, e fez sucesso entre as grandes cariocas.
Mas quem quiser ouvir a batucada mais famosa de São Paulo vai ter que ir ao Anhembi no domingo de carnaval ou esperar até o ano que vem. É que os últimos tempos não têm sido fáceis para a azul-e-branco, que em 2010 está no Grupo de Acesso. A Nenê é a primeira escola de muitos e a segunda de quase todos, orgulho da zona leste e uma festa para quem gosta de samba no pé em vez de desfile militar. Vai fazer falta no grupo principal e tem um grande desafio para voltar porque terá de enfrentar, entre outros, Unidos do Peruche e Camisa Verde.
Décio Trujilo é editor-executivo do Jornal da Tarde