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Desculpe a poeira - Sugestões de leituras e outros achados

Para entender o inferno

Por Ricardo Lombardi
Atualização:

Circular: "Ficou famoso o dito 'O inferno são os Outros', da esplêndida peça Entre Quatro Paredes, de Jean-Paul Sartre (1905-1980). Mas a verdade é que, mais que adágio elegante, a frase, solta, não permite uma compreensão precisa do que significa. Há, primeiro, a complicação de estar inserida num sistema filosófico um tanto intrincado: cada fala e cada cena remete ao existencialismo sartriano esmiuçado em obras como O Ser e o Nada e O Existencialismo É um Humanismo. Mas é óbvio que não faria sentido exigir do espectador esse prévio arcabouço teórico. Importante de fato é conhecer o texto de onde a frase foi extraída, o que, na falta de montagens, é bem mais razoável. Isso volta a ser possível para os brasileiros com a reedição da peça, fora de catálogo há anos, prevista para este mês pela Civilização Brasileira.

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Encenada pela primeira vez em Paris em 27 de maio de 1944, ainda durante a ocupação nazista, Huis Clos (título original) obedeceu à risca às indicações de Sartre para compor o cenário do inferno, onde transcorre a ação: um quarto despojado, com móveis e decoração no estilo 2oº Império francês, com três sofás coloridos, um bronze sobre uma lareira e, sobrando por ali, um abridor de cartas. Foi um sucesso na mesma medida em que provocou polêmica. No Brasil, a estréia aconteceu seis anos depois, numa montagem histórica no TBC. Com tradução de Guilherme de Almeida, o diretor Adolfo Celi reuniu no elenco Cacilda Becker, Sergio Cardoso, Nídia Lícia e Carlos Vergueiro. Em apenas um ato, são apresentados os seus quatro personagens: um criado, que, com polidez impagável, recebe os "fregueses"; o jornalista brasileiro Garcin - um pacifista com o mundo e cafajeste com a mulher -, que foi fuzilado ao tentar desertar durante a guerra; Inês, a empregada dos Correios que viveu para torturar uma jovem que um dia abriu o gás do apartamento que compartilhavam; e Estelle, uma socialite bonita, adúltera e infanticida, que morreu discretamente de pneumonia.

Condenados a passar a eternidade juntos, é no confronto dos três que se encontrará a razão da frase e a pedra de toque do existencialismo: não é a mera presença dos Outros que os atormentará, mas sim a consciência que esses Outros têm das culpas de cada um. Praticamente zeram-se os conflitos morais individuais, como o tema e os personagens poderiam induzir. É pior e mais egoísta: para Garcin, no fundo, não importa tanto se foi pacifista ou covarde, mas sim o juízo que essa consciência externa e incontrolável dos vivos e de seus companheiros de danação vai preservar sobre os seus atos; a Estelle, fica a memorável cena em que ela vê um jovem, que a chamava de 'seu cristal' (e por quem nutria um certo desprezo), conhecer a verdade sobre o que ela fez em vida. Mesmo que hediondo, igualmente para ela não tem importância: o que a faz sofrer é que o 'cristal' tenha se espatifado. Para Inês, Sartre reserva o papel de uma realista linha-dura das profundezas, para quem não há saída além de exacerbar o embate na disputa com Garcin pela posse de Estelle, mesmo que, num momento de fraqueza, reconheça, numa síntese do mal-estar existencialista, que precisa do 'sofrimento dos outros para existir'.

Aos poucos, vêem-se esquecidos pelos vivos. Mas restarão esses últimos e eternos seres. Mantêm-se, assim, indefinidamente dolorosas as suas mesquinharias e dúvidas por meio da consciência desses terríveis Outros que seguem, mesmo que na morte, existindo. Parece o extremo do pessimismo, mas não é. A filosofia de Sartre - e isso também é motivo de confusão - comportava algumas chances de 'salvação', quando o homem exerce a sua liberdade absoluta, ainda que nas piores condições. Em Entre Quatro Paredes, isso será apenas esboçado por Garcin. Talvez seja possível, talvez não. Mas fica a chance, acalentadora, de que o homem pode fazer algo diferente de seu destino."

(Almir de Freitas em "Para entender o inferno", texto de 2002)

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