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Desculpe a poeira - Sugestões de leituras e outros achados

Nada de porraloquice. Me promete.

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Por Ricardo Lombardi
Atualização:

'Nada de porraloquice. Me promete'.

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Nesse tempo, em Pindorama, mais precisamente a cada mês de setembro, sempre acontecia o Baile da Primavera. Era um baile a rigor, com smokings, vestidos longos, e geralmente abrilhantado pela orquestra de Jaboticabal, fartamente anunciada como garantia de sucesso, pois gozava de grande prestígio na execução de valsas e boleros. Nesses setembros, os dias eram claros, o céu liso, 'um céu de vidro' como se dizia, e a temperatura podia ser considerada amena para a região, apesar de já prenunciar o calorão dos meses imediatos. Era um tempo propício pra tagarelar, principalmente nos finzinhos de tarde, depois da janta, quando as famílias puxavam cadeiras para as calçadas, a que se juntavam vizinhos ou amigos. E ficavam rindo gostosamente à toa, jogando conversa fora, assegurando entusiasmo à algazarra das crianças. Eram risos, vozes e pequenos gritos, tudo amortecido pela amplidão do espaço livre, até que 'a fresca da noite' e o sono os dispersassem.

Entre as mulheres, por semanas se falava em organza, duchese, tule, cetim, tafetá, e em tantas outras fazendas finas, entregues aos cuidados de costureiras nervosas com a quantidade das encomendas. E era também inevitável vazar a informação de que a Mercedes, a Rosa Stocco, ou a Brígida, enfim, uma das moças da cidade iria escandalizar com o decote ousado do seu vestido, e, diga-se, a cada ano mais atrevido. Esbanjavam-se ainda comentários contidos, às vezes nem tanto, sobre a perspectiva casadoira que o evento abria generoso. Mas só dias antes do baile, apesar de curtido por meses, é que as moças de Pindorama iam às farmácias e, entre acanhadas e ar distraído, davam fim ao estoque de pedra-pome. Era uma pedra cinza e porosa, vendida em tamanho pouco maior que um ovo de galinha, embora amorfa, que elas então friccionavam na palma das mãos para eliminar calosidades. E se aplicavam no trato da própria pele de tal modo que seus eventuais parceiros, durante o baile, tivessem a sensação de tomar entre suas mãos de príncipes encantados verdadeiras mãozinhas de seda de suas donzelas.

Se era assim no baile, em que românticos mancebos se alumbravam com um simples toque de mãos, capaz de transportá-los para fantasias inefáveis, imagine-se agora - nesses tempos largos e tão liberais - se mãozinhas de seda, mesmo quando de homens barbados, se insinuassem até as partes pudendas de alguém, fossem essas partes roxas, pretas ou de cor ainda a ser declinada. Seria o êxtase!

(Nada de porralouquice. Me promete.!)

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Daí minha mania, se esbarro com certos intelectuais, de olhar primeiro para suas mãos, mas não só. Tenho até passado por algum constrangimento, pois me encaram com um viés torto no olhar, se, como bom empirista, demoro demais no aperto de mão. Que fazer? Mania é mania. Seja como for, apesar de avessos a bailes e afetarem desdém pelas coisas mundanas, o que tenho notado é que muitos deles parecem fazer uso intensivo de pedra-pome, ainda que pudessem dispensá-la. E com a diferença também de que as moças de Pindorama, que só usavam essa pedra uma vez por ano, davam duro no trabalho. Eruditos, pretensiosos, e bem providos de mãozinhas de seda, a harmonia do perfil é completa por faltar-lhes justamente o que seria marcante: rosto. Em conseqüência desse aparente paradoxo, tenho notado também que estão entregues a um rendoso comércio de prestígio, um promíscuo troca-troca explícito, a maior suruba da paróquia, Maria Santíssima!, quando o troca-troca em Pindorama, picante e clandestino, era bem mais interessante. Daí que aquela pedra nostálgica, que antes era só pome e se compunha com devaneios de mancebos e donzelas, acabou virando a pedra angular do mercado de idéias.

Schopenhauer, coitado, é que dizia amargurado: respeito os negociantes porque passeiam de rosto descoberto, apresentando-se como são quando abrem as portas do seu comércio. Mas era ingênuo esse Schopenhauer, ele não sacava bem as coisas, estava por fora com sua carranca, não sabia desfrutar os doces encantos da vida e, mais que tudo, nunca levou em conta a comovente precariedade da espécie. Se bem que, mesmo precária, certos espécimes não precisavam exagerar. Aqui entre nós, pra que ir tão longe, pra que falar tanto em ética? Ponderando bem as coisas, não devemos ser duros com eles, afinal, se vai uma ponta de bravata naquela jactância toda, vai também uma carrada de candura quando metem sua colher na caldeira dos valores, cutucando a menina-dos-olhos do capeta com vara curta, sem suspeitarem que é nessa mesma caldeira que se cozinham os impostores. Ponderando ainda em outra direção, e é tudo só uma questão de boa vontade, não há por que censurá-los, devemos a eles até gratidão, afinal, aqueles extremados não deixam de contribuir de modo inestimável ao ilustrarem a versão mais acabada do humanissimus humanus. No que pecariam, pecariam?...

O bisavô é que sabia das coisas, não improvisava, punha milênios em cada palavra, 'às favas o que a gente pensa'. Talvez o negócio seja fazer média, o negócio é mesmo fazer média, o verbo passado na régua, o tom no diapasão, num mundanismo com linha ou no silêncio da página.

Custou mas cheguei lá, sou finalmente um diplomata, cumprindo à risca a antevisão de regozijo do bisavô, que continua por sinal mais vivo do que nunca, rindo às gargalhadas na surdina, e com quem divido agora a parafernália e o guarda-roupa, zeloso com a antiga indumentária, pisando macio as botinas de pelica, testando o foco das lentes, usando colete, relógio de bolso, jasmim.

(Saudades de mim!)"

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(Raduan Nassar em "Mãozinhas de Seda", do livro "Menina a Caminho").

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