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Histórias e ficções

Editora publica o diário dos anos felizes de Ricardo Piglia

Uma conversa com o editor Leandro Sarmatz, responsável pela publicação de ‘Os anos felizes’, segundo volume dos diários do crítico e ficcionista argentino Ricardo Piglia

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Atualização:

Ricardo Piglia passou a vida registrando seus dias em cadernos manuscritos. 327 cadernos, como se disse.

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Anos atrás, cercado por uma doença implacável, Piglia decidiu reler, editar e enfim publicar seus diários. Mas aí os assinou como um outro, Emilio Renzi, nome que desde o início da carreira lhe servira para batizar pseudônimos, personagens e narradores de vários de seus textos. Um ser ficcional, um alter ego, seu duplo.

Os registros dessa vida dual passada a limpo chegam agora em três volumes, publicados no Brasil pela editora Todavia, sob os cuidados do editor e escritor Leandro Sarmatz.

Se o primeiro volume, Anos de formação, nos apresentou a um jovem de raro talento e ambição, este segundo volume, Os anos felizes, mostra um escritor já publicado, consolidando seu nome na cena literária argentina, em meio às turbulências sociais e às violências políticas dos anos 60 e 70.

Suas anotações falam de uma vida única, de um escritor extraordinário que imagina futuros contos e romances. Mas falam a uma vida qualquer, alguém que trabalha, paga contas, lê livros, vê filmes e se perde pela cidade, pelos amigos, pelos amores. Alguém que vê a vida atravessada pelo caos de seu tempo e, apesar de tudo, reconhece que estes podem ser seus anos felizes.

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Na conversa abaixo, o editor Leandro Sarmatz fala sobre a importância dos diários para a obra de Piglia, sobre a maneira como o escritor argentino intuiu grandes tendências da literatura contemporânea e sobre a leitura como gesto forte e fecundo.

  Foto: Estadão

A cada livro publicado, vocês da Todavia lançam a pergunta: "Por que publicamos?". Talvez possamos começar por aí. Por que publicar Ricardo Piglia? O que esses livros significam para a literatura, para você?

Por que publicar Piglia? Acho que nenhum outro autor contemporâneo produziu um diálogo tão profícuo com o próprio ato da leitura. Piglia levou ao extremo aquela afirmação de Borges, sobre como sua felicidade como leitor era superior à sua vida de escritor. Todo ato de escrita de Piglia é um ato de leitura. E uma leitura forte, criativa, fecunda e que se abre para outras leituras. Publicar os diários, portanto, é colocar a importância da leitura na enésima potência.

 

Os leitores menos familiarizados com a obra de Piglia talvez estranhem a ideia de um escritor que, no fim da vida, relê décadas de cadernos manuscritos e os edita e publica na forma mesmo de um diário, mas um diário atribuído a outro. Como você enxerga esse gesto final de Piglia?

Piglia passou a vida a preencher os proverbiais 327 cadernos. Diagnosticado com uma doença debilitante e terminal, releu-os e reescreveu, dando coerência, unidade, ritmo e variedade aos diários originais que, certamente, deviam ter outro tom e caráter.

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Basta pensar nos diários de Kafka, por exemplo, que não passaram por uma reescritura e ainda hoje deixam leitores e especialistas perplexos com passagens absolutamente arcanas (pois um diário é escrito na intimidade mental mais restrita; o diário "ideal" não pressupõe o outro, o leitor).

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O gesto final de Piglia, esse processo de retomada dos diários - uma visita à própria memória -, tem a generosidade de alguém que durante toda a vida foi um leitor bastante especial. Não sei o que significou para ele esse processo, mas certamente para nós, leitores, o seu retorno aos próprios diários é um gesto de imensa generosidade.

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O Brasil talvez tenha sido um dos primeiros países a reconhecer a qualidade literária de Piglia, mesmo quando ele era (quase) desconhecido no mundo hispânico. Mas e hoje? Como foi a recepção do primeiro volume dos diários? Você imagina que a publicação desses diários pode de alguma maneira redefinir a leitura dos demais livros do autor?

Salvo engano, a primeira tradução de um livro de Ricardo Piglia foi feita no Brasil, pela Iluminuras de Samuel Leon. O que é um movimento extremamente importante, se pensarmos que um autor como Borges precisou sair antes em francês para ser lido e traduzido no Brasil. Primeiro ponto. Depois, Piglia sempre foi bem lido aqui por alguns dos nossos melhores críticos, como Davi Arrigucci Jr., entre outros.

Piglia, contudo, nunca foi um best-seller, nem aqui nem na Argentina. É um autor refinado, que muitas vezes - principalmente nas primeiras obras - pressupõe que o leitor tenha uma constelação de referências, que vão do cinema noir a notas de rodapé da literatura platina.

Porém, tivemos a boa surpresa que foi a incrível recepção crítica e boas vendas quando publicamos o primeiro volume dos diários, algo muito consistente. Vejo nisso um sintoma do gosto atual do leitor, que privilegia o discurso "real" e supostamente menos romanesco (basta ver o sucesso de Karl Ove Knausgård, das biografias, etc.) em detrimento da escrita "apenas" ficcional. Por isso, embora possam igualmente ser lidos como o "romance de uma vida", os diários de Renzi/Piglia também são a reescritura de uma vida.

 

Quer falar um pouco sobre os caminhos da edição em si? A prospecção do livro, as opções do tradutor, a concepção do projeto gráfico, escolha das capas e das fotos...

O projeto das capas foi algo muito inteligente do Pedro Inoue, o designer responsável pelo visual dos três volumes. Cores pastel, foto do autor no mesmo período referido nos diários, parte do texto manuscrito. Tudo para reforçar uma estética pessoal, algo nostálgica e autorreferencial.

A tradução do Sergio Molina é muito especial. Molina teve o engenho de captar, em português, a mescla de escritura ensaística e cor ficcional que abunda no texto de Piglia nos diários. É um tom a um só tempo intimista e aberto - como em um de seus próprios ensaios -, acabado e mesmo assim sugerindo o germe de novas histórias.

 

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Falando em edição, uma das faces de Renzi que Piglia parece fazer mais questão de retratar nos diários é a do editor, o cara que dirige revistas, que organiza coleções, que escreve prefácios e perfis biográficos e quartas capas. Como você vê essa relação do leitor voraz com o editor incansável, com o crítico prolífico, com o escritor?

O editor, em Piglia, é mais uma faceta desse "superleitor" que ele foi e sempre postulou para ler seus escritores preferidos, como Borges, Arlt, Pavese, os americanos, etc. Seja como editor, como crítico, como ficcionista - tudo isso é variação desse processo intenso de leitura, que se manifesta das mais variadas formas.

Um editor que escolhe determinado livro para publicar e, depois, pensa em capa e em outros textos para acompanhar a edição - esse sujeito está articulando uma leitura da obra em questão. O resultado - esse livro, com essa capa e esses textos de orelha - é a leitura particular dessa pessoa e de sua casa editorial, que se manifesta no texto e em todas as outras coisas que o gravitam, da forma gráfica ao tipo de inserção do livro na sua cultura.

 

No ensaio "Hotel Carsson", você fala da possibilidade de ser ler Piglia como uma espécie de precursor da literatura híbrida contemporânea. E, de fato, numa das entradas do diário ele faz uma anotação que hoje parece certeira, lapidar: "O futuro da narração não dependerá da construção imaginária de um mapa de fatos, e sim da combinação de autobiografia, observação e reflexão"...

Piglia, herdeiro criativo e substantivo de Borges, radicalizou ainda mais o expediente borgeano de comentar um livro inexistente com as armas do ensaísmo. Ele inoculou ensaísmo na ficção e injetou ficção no ensaio. Respiração artificial, sua obra-prima, expõe esse mecanismo de forma genial. Porque oferece variadas entradas. É possível lê-lo como um romance familiar. Também como uma história da Argentina numa casca de noz. Uma meditação sobre a herança, seja familiar ou literária. Também um estudo sobre a violência da história na América Latina. E, por fim, uma reflexão sobre o que significou importar o repertório ocidental para um subúrbio do Ocidente, ou seja, uma reflexão sobre a tradução como ato criativo.

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O hibridismo de Piglia, hoje, atravessa a melhor literatura, de Bernardo Carvalho a Carrère, de Sebald a Isabela Figueiredo - passando por Keith Gessen, Laurent Binet, Olga Tokarczuk e muitos outros. Isso não significa que estes autores leram Piglia e/ou foram marcados por ele. Mas sinaliza para uma intuição do autor argentino para os caminhos que seriam traçados pela ficção num tempo de hiperdocumentação, de fragilidade do real, de inundação de discursos e formas. Ele parece ter visto isso antes. E boa parte da literatura hoje está nesse caminho.

 

Piglia faz com que Renzi viva uma constante ansiedade com o destino de seus cadernos. O herói dos diários está sempre se perguntando: como serei no futuro, o que estes diários serão no futuro? "Escrevo nestes cadernos na crença de que um dia terá sentido passá-los à máquina e publicá-los", ele anota, "porque com minha obra terei justificado a leitura destas anotações diárias e pessoais". Aí fica a pergunta: esses diários de Renzi se justificariam sem a obra de Piglia? Mais que isso: são os próprios diários a melhor realização daquela forma nova, híbrida, que o herói dos diários diz ter procurado? São eles a grande fusão entre crítica e autobiografia, entre história e ficção, entre o privado, o público e aquilo que se publica?

Eu diria outra coisa. A obra de Piglia só é o que é por causa dos cadernos de Renzi. A obra de Piglia é uma longa conversa com os cadernos. Por isso eles são o seu "laboratório do escritor". É nos cadernos que Piglia experimentou histórias, exercitou a crítica, moldou e expandiu sua persona literária. Sem os cadernos provavelmente não haveria obra; e sem a obra, os cadernos não se justificam.

 

Esta edição propicia uma experiência bem interessante: depois de ler a vida de alguém fragmentada em trechos de diários, o leitor reencontra essa vida agora disposta na forma de um índice onomástico. O que esse índice revela, se é que revela algo? Dá para dizer que ele também conta uma história sobre a vida do herói dos diários?

Depois que publicamos o primeiro volume, alguns leitores e amigos comentaram como seria útil ter um índice organizado - porque os diários são repletos das mais variadas referências. E realmente, vendo o resultado final do onomástico do segundo volume, vejo que eles tinham razão. Porque é uma delícia procurar nomes e entradas e depois se deparar com o que Renzi escreveu sobre eles.

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Acho que essas entradas revelam, para além dos interesses onívoros do autor, uma construção muito consciente de sua rede, sua constelação - de livros, amigos e acontecimentos.

 

Os anos descritos nesse segundo volume são dos mais graves da história argentina, anos de golpes militares, luta armada, crises, mortes, misérias. "Apesar de tudo", anota Renzi, "é uma época afortunada". Não é irônico que, ao fim da vida, Piglia tenha decidido chamar de felizes justamente os seus anos mais conturbados e incertos? Minha tentação é perguntar: o que existe aí para nós? O que o salvou, apesar de tudo, e pode nos salvar, apesar de tudo?

O que salvou Renzi - se é que ele foi salvo - foi a ironia em relação à História (e uma história conturbada e violenta daquela Argentina dos 60-70). Sem essa ironia, esse deslocamento - graças em grande parte à literatura -, provavelmente Renzi não teria sido poupado.

 

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