Foto do(a) blog

Histórias e ficções

Bob Dylan, um narrador

A Academia Sueca anunciou o ganhador do Nobel de Literatura. A internet não soube lidar. Foi uma infinidade de artigos, textões e tuítes sobre as ousadias, as injustiças e as incoerências da escolha. Mas a única coisa que não me saía da cabeça era um filme dos irmãos Coen.

PUBLICIDADE

Por
Atualização:

Inside Llewyn Davis começa com um cara cantando e tocando violão em um palco escuro. Quando termina, ele diz: "Vocês já devem ter ouvido essa. Se não é nova e não envelhece, é música folk".

PUBLICIDADE

O filme é de 2013 mas se passa em 1961. Conta as desventuras desse tal Llewyn Davis tentando sobreviver de sua arte no bairro nova-iorquino de Greenwich Village. Sem grana e num frio desgraçado, ele erra pelas ruas da cidade, em busca de um lugar para tocar e outro para dormir.

Nos seus descaminhos, Llewyn vai ouvindo as canções dos outros e cantando as próprias canções. Música folk. Sempre com letras que falam de soldados que voltaram da guerra, de pescadores que fizeram a vida no mar, de andarilhos que estiveram por toda parte, de amantes que partiram por rumos diferentes, para um dia voltar ou nunca mais se ver.

"Quem viaja tem muito o que contar", disse o filósofo alemão Walter Benjamin no ensaio O narrador -- um desses textos para se reler de quando em quando e para sempre. "O narrador é alguém que vem de longe". Foi ver o mundo e voltou para dizer como é. Acaba de chegar e já está de partida. É alguém que, nos seus caminhos, vai colecionando as histórias dos outros e vivendo as próprias histórias.

Inside Llewyn Davis se encerra com o mesmo cara cantando e tocando violão, de volta ao mesmo palco escuro. Quando termina, Llewyn dá lugar a um jovem cantor. Pela voz e pela gaita, a gente sabe: quem chega à cena é Bob Dylan. Mas a letra de sua canção logo diz: "Adeus, meu amor. Vou partir de manhã cedo, qualquer dia a gente se vê".

Publicidade

Nos anos seguintes, esse mesmo Dylan vai sair desse mesmo bairro de Greenwich Village para conquistar meio mundo e revolucionar a música folk. Quase sem querer, os irmãos Coen acabaram contando a história de como o folk faz uma ponte entre a tradição dos narradores antigos e o Nobel de Literatura de 2016.

Em 1936, quando escreveu O narrador, Benjamin falava de uma mudança fundamental: as histórias que os narradores antigos cantavam e recitavam em voz alta tinham dado lugar ao romance moderno, com suas palavras escritas, presas dentro de um livro. E o romance se tornou um tipo de narrativa tão poderoso que muitos o confundem com a própria ideia de literatura. Mas literatura é só romance?

Ano passado, a polêmica se deu em torno do Nobel de Svetlana Aleksiévitch, jornalista bielorrussa que escreveu sobre a guerra e o desastre de Tchernóbil. Foi uma infinidade de questionamentos: seus livros são romances? São história ou ficção? Jornalismo é literatura?

Em seu discurso de agradecimento, Svetlana rebateu: "Ouvi mais de uma vez e ainda ouço que isso não é literatura. Mas o que é literatura hoje? Quem pode responder?" A seu modo, a Academia Sueca sugere que a resposta pode ser mais complexa -- e interessante -- do que muitos ainda pensam.

Afinal, a literatura não é nova nem envelhece. Está viva desde sempre porque muda o tempo todo. Cada época tem seus próprios narradores e entende a literatura de seu jeito. Hoje nos surpreende que o Nobel tenha ido para um cantor pop. E o dia que for para um roteirista de cinema?

Publicidade

Quer mais histórias e ficções? Me acompanhe no Twitter ou no Facebook 

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.