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Histórias e ficções

A verdade das mentiras de Elena Ferrante

Essa semana caiu uma bomba no mundo das letras. Claudio Gatti, jornalista investigativo italiano, revelou a identidade de Elena Ferrante, nome que assina a "Série Napolitana", tetralogia que é um dos maiores fenômenos literários do momento.

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Atualização:

(Nenhum spoiler sobre os livros. Mas alguns sobre a identidade de Elena Ferrante)

 Foto: Estadão

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Ao acabar com o mistério, Gatti talvez estivesse esperando o aplauso dos críticos e o agradecimento dos fãs. Só que não. Foi devidamente espinafrado. Por ter invadido a privacidade de Elena Ferrante. Por ter transformado esse esconde-esconde literário em uma feroz investigação policial. E, sobretudo, por ter se recusado a aceitar a opção de Ferrante pelo anonimato -- mais uma prova da velha incapacidade masculina de entender que quando alguém diz não é não. E ponto.

Gatti tentou se justificar. Disse que sua descoberta é um serviço de utilidade pública para os leitores que estão aguardando o lançamento de Frantumaglia, livro que reúne fragmentos de cartas, entrevistas e relatos autobiográficos de Elena Ferrante. Nas palavras de Gatti, "são seus únicos escritos pretensamente não ficcionais". Mas, para ele, "essas migalhas de informação foram concebidas apenas para satisfazer o apetite dos leitores por uma história pessoal que pudesse ter relação com o cenário napolitano dos romances". É por isso que ele avisa: "Nenhum dos detalhes corresponde à vida e à trajetória" da pessoa que de fato os escreveu. "É tudo mentira." Um dos raros artigos que defende a postura de Gatti reforça a denúncia: "Estão pedindo para os leitores pagarem 13 dólares por Frantumaglia, sem avisar que seus detalhes pertencem a uma pessoa que não existe".

Todo esse ímpeto de acusar o caráter ficcional de uma pretensa autobiografia soa meio ridículo. Parece exigir que o código de defesa do consumidor obrigue as editoras a esclarecer o que é verdade e o que é fictício. Parece supor que inventar biografias ficcionais seja um crime, e não um pressuposto literário. Ignora que a ambiguidade entre real e ficção sempre foi um dos maiores artifícios de todo romance que se preze, desde Cervantes e Defoe.

Mas Gatti não parou por aí. Além de alertar que Elena Ferrante não existe de verdade e que seus romances não trazem nenhum traço autobiográfico da pessoa que de fato os escreveu, ele se permitiu contar a trajetória real da mãe dessa pessoa, fugitiva dos horrores do nazismo. Com mais essa indiscrição, parece ter tido a pachorra de explicar a Ferrante que aí sim estava a história que deveria ser contada. A autobiografia de uma pessoa que existiu de verdade. História verdadeiramente "baseada em fatos reais", e não mera invenção.

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Quem escreveu os romances de Elena Ferrante devia ter vários motivos para proteger seu anonimato sob um pseudônimo. Uma simples timidez. Uma legítima estratégia de marketing. Uma crítica a este nosso mundo de celebridades. Uma preguiça da imagem pública de romancista em noites de autógrafos e feiras literárias. Uma necessidade de se libertar dos estigmas do gênero "literatura para mulheres" ou do peso de seu trauma familiar. Um desejo de fugir de todo o resto e se dedicar apenas ao que de fato interessa: a escrita. Assim como a protagonista de seus romances napolitanos, Elena Ferrante fez de tudo para desaparecer. Pois o desaparecimento é uma forma de liberdade.

Mas, com técnicas de policial e ares de delator, Gatti e os sites que o publicaram parecem pensar que seu anonimato não passa de uma fraude. Como se fosse reprovável o gesto literário de alguém que inventou sob o nome Elena Ferrante não apenas um pseudônimo, mas uma "pessoa real" que dá entrevistas, escreve cartas e publica fragmentos autobiográficos. Como se fosse inadmissível que alguém tenha julgado necessário -- ou mais interessante ou mais divertido -- apresentar uma série de romances não como mera ficção, mas como ficção "baseada em fatos reais" da vida de uma romancista, com o detalhe de que a romancista é tão ficcional quanto seus personagens. Tudo bem que Gatti não saiba jogar esse jogo. Só não precisava ter estragado a brincadeira dos outros.

 

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