Renato Prelorentzou
05 Maio 2017 | 21h46
Se você gosta de cinema, literatura e cultura pop, é bem possível que já tenha ouvido falar da tal jornada do herói. Ela é um padrão narrativo que o acadêmico americano Joseph Campbell identificou em mitos, rituais e ficções de povos de todos os tempos e lugares — e que podemos reconhecer em muitas das histórias que vemos e ouvimos até hoje, como Star Wars, Matrix, Harry Potter…
Resumindo num tuíte, daria para dizer que a jornada do herói conta a história de um jovem que passa do ordinário ao extraordinário, transformando a si mesmo e ao mundo ao redor.
Campbell usou bem mais que 140 caracteres e descreveu esse modelo narrativo primordial nas centenas de páginas do clássico O herói de mil faces, publicado em 1949. Com o passar das décadas, a jornada do herói foi recebendo muitas releituras e acabou esquematizada mais ou menos nessas etapas:
Mas, com o passar das décadas, também foram surgindo críticas ao padrão definido por Campbell: como qualquer outro estudo, O herói de mil faces estaria muito ligado a valores e convenções da época em que foi feito — e, portanto, acabaria repetindo estereótipos de tempos ainda mais retrógrados, perpetuando limitações e injustiças na representação de certas etnias, religiões e gêneros.
Pensando nisso, a pesquisadora americana Maureen Murdock publicou em 1990 The Heroine’s Journey: Woman’s Quest for Wholeness, livro que apresenta a jornada da heroína, uma alternativa à jornada do herói.
Nos mitos estudados por Campbell, diz Murdock, as mulheres eram sempre secundárias: propriedade de pais e maridos, princesas a serem salvas, troféus a serem conquistados, espólios de guerra a serem pilhados e violentados. Tinham pouco poder político, militar e religioso, pouco papel na sociedade além de cuidar da casa e da família.
E as histórias que tomavam a jornada do herói como modelo acabavam refletindo esses valores. As personagens femininas eram sempre filhas, esposas e mães — ou, então, vilãs rancorosas e vazias, tentações a desviar o herói de seu caminho. Eram expressões do amor carnal ou maternal, figuras a serem protegidas ou idealizadas. Nunca concretas, nunca complexas. Raramente heroínas de seu próprio destino.
Estudiosa do trabalho de Campbell, Maureen Murdock achava que a jornada do herói não conseguia expressar as histórias das mulheres contemporâneas. Os conceitos, temas e arquétipos antigos certamente continuariam ressoando na cultura, dizia ela, mas as transformações da sociedade demandavam uma atualização na maneira de contar as histórias.
Ao aventar a possibilidade de um modelo alternativo, Campbell teria dito: “As mulheres não precisam fazer a jornada. Em toda a tradição mitológica, a mulher está lá, não tem que fazer nada além de perceber que é o lugar aonde os homens querem chegar”.
Diante disso, só restava a Murdock formular um novo modelo, identificando quais aspectos da jornada de Campbell seriam pertinentes e quais precisariam ser modificados e rejeitados, livrando as mulheres dos rótulos antigos. Criar uma jornada da heroína, para inspirar histórias que não falem de uma mulher vivendo uma jornada de homem, mas sim de uma mulher vivendo uma jornada de mulher.
Dez anos depois do livro The Heroine’s Journey, outra pesquisadora americana, Victoria Lynn Schmidt, desenhou um arco de heroína mais completo que o de Maureen Murdock (vale a pena dar uma olhada no site do Heroine Journeys Project, iniciativa de três pesquisadoras americanas que se dedicam a colher, estudar e transformar narrativas de mulheres e outros grupos marginalizados, que seguem por caminhos diferentes do tradicional arco da jornada do herói de Campbell):
Segundo esses padrões de jornada, o herói começa com um sonho de aventura e a heroína, com uma ameaça física ou psicológica. A jornada do herói termina quando ele volta reconhecido, valorizado e reverenciado pela comunidade. A jornada da heroína se encerra quando ela volta e percebe que seus esforços não lhe trarão o reconhecimento que esperava da esfera masculina da comunidade. E, então, ela precisa confrontar e rever seus pressupostos sobre sucesso e sentido, tentando integrar polaridades (sucesso e derrota, saúde e doença, vida e morte) e, assim,
encontrar um novo lugar para si mesma no mundo.
É claro que esse modelo de jornada de heroína tem suas limitações e não consegue representar a vida e os caminhos de tantas mulheres — assim como a jornada do herói também não consegue representar a dos homens, claro. Todo padrão narrativo é, obviamente, uma padronização, uma redução de histórias possíveis.
Mas o trabalho das pesquisadoras que elaboraram a jornada da heroína foi fundamental para denunciar a ausência do protagonismo feminino nos modelos clássicos. E foi também um passo decisivo para atualizar e recriar estruturas da narrativa e do próprio heroísmo.
As princesas de Frozen e Valente, a Furiosa de Mad Max, a Rey de Star Wars e, agora, a Mulher Maravilha e a Capitã Marvel. O boom das protagonistas femininas começa com um novo jeito de contar histórias.
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