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Indie, pop, rap, dance, jazz, disco, punk, etc.

[Outra história] O dia do seu casamento

Acordou com um embrulho no estômago.

Por Pedro Antunes
Atualização:

Correu para o banheiro, debruçou-se sobre o vaso sanitário. E nada.

Ouça enquanto lê: 

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Não havia nada ali que quisesse sair. Parecia ocorrer uma guerra nuclear dentro dele. Talvez fosse a garrafa de vinho bebida inteiramente no gargalo pela falta de copos limpos, desacompanhada de qualquer alimento, cobrando o seu preço.

A dor de cabeça, enfim, se fez notar. Ótimo, ele pensou. Ótimo.

As lembranças de uma noite confusa também. Depois de entornar o vinho, saíra para encontrar Rafael, amigo dos tempos de colégio, em um bar qualquer no centro da cidade. De Uber, é claro, ou assim esperava.

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Ao deixar o banheiro, viu no sofá uma morena bonita, de vestido estampado, deitada ali. Dormia, ainda bem.

Voltou ao banheiro. Encontrou o celular ainda no bolso da calça jeans não tirada para dormir.

"Rafa, cara, me ajuda. Quem é essa garota que está aqui comigo?", escreveu.

Uma eternidade parece ter passado desde que enviara a mensagem. Imaginava-se com cabelos brancos, longos, barba gigantesca, escondido no próprio banheiro, a esperar pela resposta que jamais viria.

A dor de cabeça lhe lembrava, contudo, de que não havia se passado tanto tempo assim. Ou, supunha, a ressaca já teria ido embora.

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Hesitou em abrir a porta e dar de cara com a moça desconhecida que dormira na seu apartamento. Conjecturou a respeito das possibilidades que haviam ali.

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Ele, afinal, nunca foi um bom galanteador. Era possível contar nos dedos (de uma mão, acredite) o número de garotas recém-conhecidas com quem havia passado a noite. A conquista, para ele, sempre fora algo complicado. Logo, essa seria a sexta garota desconhecida a aceitar ir com ele para casa após algum xaveco milagroso?

A resposta não chegava.

Outra questão lhe atormentava. Não se julgava pronto para qualquer relação interpessoal ainda. A ferida deixada aberta por Carol seis meses atrás ainda lhe parecia dolorosa o bastante para ser transformada em uma transa de consolo. Ele não se sentia pronto para isso.

E nada de Rafael responder ao seu chamado.

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Ok, pensou ele. Precisaria lidar com a estranha. Pensou de que forma a acordaria, aquela de quem ele sequer lembrava o nome. Faria um café, na esperança de que ela despertasse com o barulho que faria na cozinha? Sacudiria a moça na esperança de que ela se mostrasse tão confusa quanto ele? Voltaria para o quarto e fingiria dormir na torcida de que ela levantasse e fosse embora?

Droga, Rafael, responde a p... da mensagem!, pensou.

- Edu? - disse ela, ao bater na porta do banheiro.

Gelou.

- Ahm, Eduardo?

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Não havia outra escolha. Olhou-se no espelho rapidamente, tentou acertar o cabelo farto incorrigível. Respirou fundo e abriu a porta.

Deu de cara com a moça bonita - de voz bonita, um tiquinho rouca, mas deliciosa.

- Oi - disse ele, sem jeito.

- É, oi. Desculpe, ouvi a porta do banheiro batendo e você ficou uma eternidade aí dentro. Pensei que estivesse passando mal.

Ele riu. De nervoso, provavelmente, porque não havia graça nenhuma naquilo. Impossibilitado pela própria timidez, decidiu agir sem pensar.

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- Quem um café? - sugeriu.

- Aceito.

Ouça enquanto lê (2): 

Passou pela desconhecida sem olhá-la nos os olhos, de cabeça baixa, e avançou até a cozinha com passos apressados. Encheu uma panela com água, Colocou-a no fogo. Colocou café (muito!) no filtro. Fez tudo sem desgrudar os olhos dos afazeres, mas ouviu os passos dela se aproximarem.

- Escuta - começou ela, também se mostrando constrangida com a situação toda - ia pedir um Uber, mas a tarifa estava dinâmica na madrugada. Dormi esperando ela voltar ao normal.

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- Não tem problema. Esse sofá é ótimo. Sempre durmo nele - ele respondeu.

Nenhum dos dois disse uma palavra por um tempo. Ela recosta o corpo na geladeira e olha para as sapatilhas pretas, sem salto, como se houvesse algo importantíssimo ali, naquele momento. Ele terminava de passar o café.

Dessa vez, a iniciativa foi dele.

- Preciso dizer uma coisa... Não lembro o seu nome.

Ela riu.

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- Sabe, eu imaginava isso. É Carina.

Ele, idiotamente, esboçou falar um "prazer, Carina, sou o Eduardo", enquanto apertava desajeitadamente a mão dela.

Serviu o café em duas canecas. Uma para ele, outra para ela. Desculpou-se por não ter pão em casa e ela disse que não precisava, assim que terminasse o café, iria embora.

Enquanto bebericavam o café amargo, já que nenhum dos dois gostava de tomá-lo com açúcar, descobriu algumas das coisas da noite anterior. Ela e uma amiga se juntaram à mesa de Eduardo e Rafael.

Rafael e a amiga logo começaram a se beijar, deixando os dois a conversar. Ele, bastante bêbado, como ela notara, falou por horas da Carol, do término, da saudade. Carina disse que até uma ligação da ex-namorada ele recebeu.

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- Depois da ligação, você pediu uma rodada de cachaça para todo mundo.

Ela riu. Ele também. Nada falado por ela, contudo, surgia nas suas lembranças. Culpou a cachaça, depois do vinho e da cerveja, pelo total blecaute. Conferiu as últimas chamadas recebidas no celular. O nome da ex-namorada estava lá. Falaram por quatro minutos e vinte e sete segundos.

Em dado momento, Rafael e a amiga decidiram ir embora. "Tenho bebida em casa", sugeriu Eduardo, disse Carina - e ele continuava sem se lembrar disso tudo.

Dividiram um Uber até o apartamento dele, onde conversaram mais. Segundo ela, ele não parava de falar da ex-namorada. O que não a incomodou, garantiu a moça. Falaram também de música. Ela era arquiteta, gostava de música pop bem feita, dos tropicalistas e muitas coisas mais.

- Desculpa se isso for grosseiro, mas a gente... - ele não soube como continuar a pergunta.

- Se a gente se pegou? - ela riu. - Não, não.

Ela contou que ele dormiu no sofá, depois de tanto conversar. E o levou até a cama, meio bêbado, meio dormindo. Foi quando decidiu pedir por um Uber, não encontrou nenhum por perto e cochilou no sofá.

- Ah, tá explicado - disse ele, depois de dar o último gole no café já morno. Ela já havia terminado o dela.

Ela disse que já era hora de ir embora. O relógio ainda marcava 9h, mas ele entendeu. Ela buscou suas coisas deixas pelo apartamento, a bolsa e o casaco. Ele se dirigiu à porta e a abriu. 

- Você parece ser um cara legal. Me adiciona no Facebook. Vamos continuar conversando. Quem sabe, quando você lidar com tudo isso que tem aí dentro de você, a gente possa sair de novo.

Ele confirmou com a cabeça e um "claro, pode deixar".

- E espero que hoje não seja um dia muito ruim. Vai se distrair, fazer alguma coisa.

- Por que? - ele perguntou.

- Hoje é o dia do casamento da Carol. Ela te ligou para contar isso, não lembra? 

Ele não respondeu.

- Eu preciso ir. Meu Uber chegou. Tchau.

Carina deu-lhe um beijo no rosto e foi embora.

De repente, todas as lembranças daquela noite voltaram de uma vez. A ligação, a cachaça, o vinho, a cerveja, o choro. Foi como ser atacado por uma avalanche.

Fechou a porta correndo. Precisava vomitar.

[Todas as sextas-feiras, o 'Outra coisa' se transforma numa 'Outra história'... O que, como sabemos, não é uma promessa cumprida, afinal é segunda-feira de manhã, em um feriado prolongado, e cá está mais um texto. É só mais uma das promessas não cumpridas pelo autor do blog]

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