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Woody Allen em seu estado mais ácido: a Amazon TV

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Por Rodrigo Fonseca
Atualização:
Woody Allen dá instruções a Miley Cyrus nas filmagens de "Crisis in Six Scenes": iconoclastia num mergulho nos anos 1960  Foto: Estadão

RODRIGO FONSECAPintou um boato de terras alemãs de que o novíssimo filme de Woody Allen, ainda sem título, estrelado por Kate Winslet e Justin Timberlake, possa abrir o 67º Festival de Berlim, agendado de 9 a 19 de fevereiro. Arroz de festa em Cannes, o diretor não deve largar seu recanto dourado na Europa - a Croisette - por outro evento, sobretudo neste momento em que o festival francês completará 70 anos. Mas os rumores deram brecha para se falar da grande contribuição narrativa do cineasta para o audiovisual no ano que passou: a microssérie Crisis in Six Scenes, da Amazon TV. É difícil pensar num texto mais abusado e mais iconoclasta (comportamental e politicamente) do que esta visita aos EUA dos anos 1960, com o cineasta atacando de ator (Amém!), em paralelo a suas atividades como realizador e roteirista. A seu lado, em cena, está um mito: Elaine May, uma das roteiristas mais talentosas dos anos 1970 (vide O Céu Pode Esperar), que dirigiu bons filmes, como O Caçador de Dotes (1971) e a delícia de fracasso Ishtar (1987). Elaine e Allen contracenam com uma química que ele só experimentou com Mia Farrow - nem com Diane Keaton.

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Pontuada por alguns dos diálogos mais abrasivos do cineasta em décadas, Crisis in Six Scenes testemunha os dias em que o casal Munsinger - formado pela terapeuta de casais Kay (Elaine) e pelo publicitário e escritor Sidney (Allen, hilário) - hospedam uma guerrilheira foragida da Lei, Lennie Dale (Miley Cyrus). A moça é afeita a toda sorte de militâncias, indo desde o amor a Fidel Castro até um flerte com os Panteras Negras. Kay recebe a jovem com carinho quase maternal, encantando-se por suas ideologias. Já Sidney encara a garota como se fosse a Peste Bubônica encarnada. O apetite voraz da moça, sobretudo pelas guloseimas de frango de que ele tanto gosta, são apenas um detalhe em todos os argumentos que ele tem para detestá-la. E, episódios a episódio, nos seis capítulos da produção, Lennie vai afogando seus anfitriões em suas missões à esquerda dos interesses dos EUA. E vai levando consigo também os satélites da vida dos Munsinger, como o jovem administrador Alan (John Mangaro).

Elaine May vive a mulher de Allen na série  Foto: Estadão

Chama atenção na série o uso discreto da metalinguagem. Há dois anos, em Cannes, ao exibir o primoroso O Homem Irracional, fora de concurso, Allen admitiu que foi pego de surpresa pelo convite da Amazon TV e que não fazia ideia de como se escreve uma série nos padrões de hoje. Há situações em que Sidney brinca com isso, ao falar da tarefa que tem de dar um tempo na Propaganda para fazer televisão como autor. Mas o maior chame de Crisis in Six Scenes é a maneira abrasiva como Allen detona o ethos revolucionário da década de 1960, debochando tanto da estratificação política da Guerra Fria quanto da psicanálise - numa sequência, Kay sugere para um casal de analisandos em risco de separação (porque ele foi flagrado com garotas de programa) que ele passe a pagar a esposa antes de casa transa. Mas poucas situações da série superam os momentos em que Sidney fala de Literatura, explicando que seu primeiro romance fala sobre um proctologista que enxerga a Luz Divina no mais escuro dos recônditos. Como Allen é um cineasta da palavra, menos preocupado com planos sofisticados e com panorâmicas que explorem o aspecto plástico do quadro, sua intimidade com o padrão "palavroso" da teledramaturgia é plena. Peca-se um pouco na direção de arte, pouco criativa. Mas, nada que tire a força dos personagens. Tomara que a Amazon banque uma segunda temporada.

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