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'Uísque com água': um brinde à reinvenção com Nelson Freitas

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Por Rodrigo Fonseca
Atualização:
Numa ambientação cartunesca, com base na prosa da Bukowski, Nelson Freitas afia a navalha de sua comicidade numa troca com um elenco azeitado, com destaque para Thogun: no Teatro Clara Nunes  Foto: Estadão

RODRIGO FONSECACartum em 3D vermutado a álcool, malandragem, niilismo e dois pares de pernas que traduzem toda a transcendência do substantivo Beleza, Uísque Com Água, espetáculo de riso, blues e metafísica em cartaz no Teatro Clara Nunes, no Rio de Janeiro, dialoga com o que existe de mais profano (e profundo) na obra de Charles Bukowski (1920-94) para além da dimensão borracha e mais popular do escritor. Gargalhada e sacanagem, dois de seus pilares permaneceram na adaptação de Pulp, feita pelo ator Sacha Bali, que encarnou o autor teuto-americano no inesquecível espetáculo teatral Pão Com Mortadela (2007), do qual trouxe a ótima Rosanna Viegas (dona de um dos pares de alegria descritos lá em cima), esplêndida aqui como a Morte e como uma bartender calibrada. Mas, íntimo daquela literatura ressaqueada, Bali (como autor e diretor), foi buscar dela mais do que seu sabor superficial: dela, ele trouxe a reflexão sobre senso de oportunidade que marca a prosa de Bukowski, que escrevia coisas do tipo "tenho uma honestidade interior nascida de putas e hospitais que não me deixará fingir que sou uma coisa que não sou". No fundo, cada escrito dele - num espelho de sua própria vida - fala sobre homens que agarram o possível para sobreviver do desastre de si mesmo. É o caso do detetive Nicky Belane, o protagonista aqui, que vai embora do teatro na cabeça e no coração da gente por culpa do reator nuclear Nelson Freitas.

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No binômio carisma + talento, os algarismos de Nelson sempre foram os mais altos. Sabe-se muito de sua faceta humorística por seu desempenho semanal no Zorra Total e em alguns filmes cômicos, mas pouco se reconheceu de seu leque de ferramentas para o drama, empregadas no longa-metragem Demoninho de Olhos Pretos (2008), no qual ele se divida entre múltiplas figuras decalcadas de Machado de Assis. Bastam dois minutos de participação no subestimado longa Eu Não Faço a Menor Ideias do Que Tô Fazendo com a Minha Vida (2012) - o qual ele engole, faminto - para que ele exponha o ar de galã caído, afetivamente subnutrido, à la Jeff Daniels, que marca a sua persona nas telas (e agora nos palcos), arejada por uma ironia ferina no olhar. Com esses recursos, Nelson edifica a figura de Belane como um Humphrey Bogart de padaria, que usa o quase bordão "Cobro US$ 6 por hora" como um cartão de visitas. Mas ele existe para além de suas ações e de suas missões: encontrar algo chamado Pardal Vermelho (referência de Bukowski à editora Black Press) e descobrir o paradeiro de um escritor, ninguém menos do que o (dito) antissemita Céline, a pedido da Morte. Belane sobrevive em nosso imaginário pela complexidade de seus sentimentos e pela retidão com que lida com o fracasso como uma mentalidade de vida.

Peça vai além da caricatura, do riso frouxo  Foto: Estadão

Assim como Belane, a Morte, na divertida atuação de Viegas, dura mais do que as soluções caricaturais que tracejam sua forma. O mesmo vale para o bookmaker com sangue no olho encarnado por Thogun (um dos achados do elenco) e a dublê de Jessica Rabbit vivida pela força da natureza Carolina Chalita. É, portanto, uma peça de personagem: esse é o legado deste (bom) trabalho de Bali à direção, tirar anti-heróis, vilões e dinâmicos da condição de esboço e transformá-los em pessoas com angústias e fraquezas como as nossas, preservando a dimensão pop das palavras de Bukowski.

Esse percurso de destipificação - parecido com o que Wim Wenders fez em Hammett - Mistério em Chinatown - é alimentado pela trilha sonora de Pedro Gracindo, que valoriza o espírito de crônica do blues. Assim sendo, imperdível por variadas razões, Uísque com Água segue até 27 de abril, só as quintas-feiras - merecia mais dias.

 

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