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Sérgio Ricardo faz uma cartografia dos afetos do morro em 'Bandeira de Retalhos', o melhor de Tiradentes

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Por Rodrigo Fonseca
Atualização:
Numa comovente atuação, o baiano Antonio Pitanga vive o cego que guarda memórias de luta no Vidigal no filmaço "Bandeira de Retalhos"  Foto: Estadão

Rodrigo Fonseca Metal pesado impõe respeito e medo no Vidigal da década de 1970 recriado com um lirismo digno das bandeirolas de Volpi no filme mais encantador (e vívido) da Mostra de Tiradentes de 2018: o drama de tintas musicais Bandeira de Retalhos. São metais que não necessariamente correspondem ao tempo retratado na trama: fuzis e pistolas modernas, empunhadas por uma PM com sanha de Bope. A estranheza aparente que estas armas causam cai por terra quando se percebe estar diante de uma quase fábula, uma fábula caída do Céu do idealismo, machucada de realidade nas articulações. Há um cuidado sincero do diretor desse experimento, o músico e cineasta Sérgio Ricardo, sumido do formato longa-metragem desde A Noite do Espantalho (1974), em injetar realismo em sua cartografia dos afetos, sem deixar que essa injeção enrijeça as juntas poéticas de uma história sobre resistência. Uma história capaz de evocar a tradição do "cinema da malandragem" do Rio de Janeiro, sendo meio Amei um Bicheiro (1953), de Jorge Illeli, meio Vai Trabalhar, Vagabundo (1974), de Hugo Carvana, e meio Rio Babilônia (1982), de Neville D'Almeida. Não são referências conscientes para Ricardo, mas são filmes com os quais a sua operação memorialística no Vidigal dialoga, no Tempo. Há nesse coletivo de longas um ethos do jeitinho carioca de lutar (e vencer) pela picardia. E esse espírito de picardia alimenta a conexão de lealdade ente os personagens que Ricardo tirou de fatos reais: moradores de um morro ameaçados pelo Estado de saírem de suas casas por um projeto de remoção. Imagens documentais - editadas com perfeita sintonia com a encenação ficcional por Victor Magrath - sublinham a veracidade do que se deu fora das telas, quatro décadas atrás. O cineasta esteve lá na época e viveu a tensão. Por isso, ele a imprime com tanta pressão em seu belo filme, que nos deixa de legado algo mais resistente do que os metais citados lá no início: Tiana, personagem de enlevo lúdico único, que a atriz Kizi Vaz nos dá de presente. Ela é a valquíria do Vidigal: a guerreira que meterá peito, coração, inteligência e alma na briga pela permanência de seu lar, mesmo dividida por uma disputa amorosa. Ela é a cereja vermelha de um bolo de sociologia e poema em forma de filme. De brinde, ganhamos uma emotiva atuação de Antonio Pitanga, vivendo uma espécie de Tirésia da favela, como um cego que já viveu muito, mas ainda tem o que aprender sobre a arte de lutar.

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