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Saruê, o espelho do feudalismo brasileiro no olhar iluminado de Fagundes

Por Rodrigo Fonseca
Atualização:
Ubu Rei: Antonio Fagundes transformou a figura do oronel Afrânio em 'Velho Chico' numa potente representação da decadência feudal no Nordeste Foto: Estadão

Ao falar sobre a extravagância de uma de suas gravatas a suas tietes durante uma festa para celebrar a chegada do neto, "Saruê" Afrânio, o coronel de Velho Chico, arregala o olho, numa expressão de perplexidade, como se escaneasse a própria alma em busca de seu senso perdido de ridículo, num gesto capaz de evocar um quadro síntese da arte do início do século XX: Angelus Novus, de Paul Klee. Seu apelido: Anjo da História. A alcunha veio do filósofo Walter Benjamin, impressionado com a riqueza simbólica no traço de Klee, potencialmente referencial à sensação de espanto de um ser angelical diante dos horrores do nosso Passado. Os olhos do anjo de Klee e os de Afrânio, na atuação de Antonio Fagundes, comungam da mesma dor, talvez porque o protagonista da atual novela das 21h da Rede Globo, consiga enxergar o inominável espetáculo do servilhismo e deseajuste agrário no Nordeste rural. Só que para o querubim de Klee a decadência era um mal externo, algo praticado pelos filhos do Homem, a ser observado como um filme de terror expressionista da Alemanha dos anos 1920. No caso de Afrânio, a decadência passa por ele, vem dele, promovendo a coversão de um corpo outrora galante - outrora tropicalista - num órgão com cirrose ética, encapuzado pela ferrugem de uma prática de poder feudal.    

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Afrânio é o homem; Saruê é o feudalismo. Mas nome e apelido se misturaram numa perda de identidade (e até de lucidez) que Fagundes traduz com pinceladas carregadas de tinta não por um excesso interpretativo, mas para realçar a caricatura que Afrânio virou no pacto com as forças ocultas do capitalismo. Um livro da década de 1970, Problemas Agrário-Camponeses do Brasil, de M. Vinhas, pode ser uma iluminada complementação à viagem do diretor de Velho Chico, Luiz Fernando Carvalho, ao imaginário que produz figuras como Saruê: "Atrasado pela monocultura e pela concentração dos bolsões de fertilidade agrário nas mãos de poucos, o Nordeste vive problemas maiores do que a seca, entre eles a criação de uma elite de regras próprias, cuja legislação não passa pelos códigos da Justiça e sim do poderio armado". Mas as influências teóricas e culturais na tessitura dramatúrgica da novela vão além das estatísticas evidências do monolitismo sociológico brasileiro.   

Rodrigo Santoro foi o jovem Afrânio Foto: Estadão

Existe um parentesco (ora direto, ora indireto) com O Poderoso Chefão, de Francis Ford Coppola, no folhetim das nove da Rede Globo, concebido pelo midas do campo Benedito Ruy Barbosa, com um texto desenvolvido por sua filha Edmara Barbosa e seu neto Bruno Luperi. Essa familiaridade vem no processo de conversão do liberal Afrânio (vivido esplendidamente por Rodrigo Santoro nas fases iniciais da novel) no Saruê, termo simbólico herdado de seu pai Jacinto (Tarcísio Meira) para simbolizar a casta senhorial do Nordeste. Essa mutação kafkiana, de um homem oprimido pela ordenança familiar numa barata política de roça, é similar à transformação que se processa na alma - e depois no corpo - de Michael Corleone (Al Pacino) ao ser forçado a seguir os passos do pai, Don Vito, no épico de Coppola.

Encontrar um falar mascado, ruidoso e bufão e uma máscara facial digna de vilão de Dick Tracy foram os achados que Fagundes encontrou em sua investigação sobre o mundo dos Saruês, trazidos para a tela como uma caricatura autoconsciente e autocrítica para forjar uma comédia do Poder. Saruê é o Ubu Rei do campo, espelho partido de uma aristocracia cuja nobreza se paga com os recursos naturais da Terra num escambo com o Diabo do fixismo político. O esbugalhar de olhos de Afrânio não é um cacoete facilitador para agradar o público pelo riso fácil. É, antes e acima disso, uma composição sofisticada para traduzir um sintoma de transbordamento da náusea rural e feudal: Afrânio é o Angelus Novus que vislumbra a impossibilidade da reforma agrária neste Brasil agrilhoado ao coronelismo e encara, com tristeza, o autosacrifício de um idealista convertido em déspota em prol do amor paterno e da ausência do amor materno. O Angelus Novus ascende aos Céus triste. Mas Saruê ri. Ri o riso dos alienados no autismo da ganância, enquanto o Brasil, como o Anjo da História, chora pela clemência de Deus.

A Comédia do Poder no horário das 21h Foto: Estadão

Nessa operação, Velho Chico acende junto, alcançando um plano mítico (e místico) na denúncia das mazelas deste país pelas vias da transcendência poética, celebrando a união criativa entre seu diretor, Luiz Fernando Carvalho, e Fagundes. Juntos, a dupla nos deu o José Inocêncio de Renascer (1993), o Bruno Mezenga de Rei do Gado (1996) e, agora, mais um meta-homem que encarna nossa opressão espiritual. Juntos, ator e diretor mimetizam do Real mais uma caverna platônica cujas paredes de pedra ficam mais translúcidas pra gente capítulo a capítulo.   

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