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De antena ligada nas HQs, cinema-pipoca, RPG e afins

'Sai de Baixo' que o humor vem aí

Por Rodrigo Fonseca
Atualização:
Marisa Orth desafia o patriarcado escondido no marsúpio do Canguru Perneta  Foto: Estadão

Rodrigo Fonseca Todo dia de março e agora, neste início de abril, o Telecine trouxe uma preciosa pensata de Renata Boldrini sobre a expansão do parque criativo de mulheres diretoras, que nos leva a valorizar e aplaudir as cineastas que, nos últimos anos, mais e melhor driblaram o sexismo e firmaram sua assinatura estética, como é o caso de uma bamba das crônicas de costume como Cris D'Amato. Esta noite, na luta para aliviar o ranço da 40ena contra o coronavírus, a Globo exibe um dos filmes mais divertidos desta realizadora carioca que contabilizou cerca de nove milhões na esteira de oito longas lançados de 2008 para cá: "Sai de Baixo: O filme" é o desta quarta-feira, às 23h10. Guiada por um senso afetivo que aposta sempre na conciliação, ao avaliar o destino de seus personagens, Cris faz a linha "comédia triste" que Fellini e Ettore Scola nos ensinaram a amar, diluindo a tristeza da realidade ao amplificar o bálsamo da resiliência. Foi assim em produções de sucesso (mas subestimadas pela crítica mais ortodoxa) como "Linda de Morrer" (2015) e a franquia "SOS: Mulheres ao Mar" (2014-15). E quando é o caso de fazer chanchada à la Zé Trindade, como é o caso da aventura em longa metragem de Caco Antibes, ela desliza pela caninha da roça tropicalista sem escorregar na caricatura.

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Cheio de viço em duas frentes técnicas, a direção de arte (de Mário Monteiro) e os figurinos (de Sônia Soares), "Sai de Baixo: O filme" combina despretensão e competência artesanal. Nele vemos um experimento de "cinevisão": trata-se de um longa-metragem decalcado de um humorístico da Globo, com um potencial de graça de assaltar o fôlego de quem se entregar, sem culpa, à diversão. Há algo mais na transposição do programa dominical (muito reprisado nas tardes de sábado) que, de 1996 a 2002, recauchutou a fórmula de comédias sobre famílias encenadas em palcos, em uma estrutura de show de riso. Era um "Bronco" ou "Família Trapo" do Plano Real, com um "algo mais". Esse tchan vem de uma marca (com traços autorais) da direção de Cris D'Amato, ainda não reconhecida pelos resenhistas (e pela própria indústria) com o respeito merecido. Respeito a ser dado às proficiências estéticas que tem na construção de uma poética particular. Estamos diante de uma diretora que construiu uma obra sintonizada com o pleito do empoderamento feminino, sempre com heroínas que fogem das amarras do machismo, na briga pela equidade de gêneros. É o caso da transformação que Cris promove na figura de Magda, o Mobral humano vivido por uma Marisa Orth no ápice do carisma. Magda não aceita mais o "Cala a boca!" que virou o bordão de seu marido, o adorado Caco Antibes, personagem que foi objeto de adoração na televisão e que, graças à inteligência cênica de Falabella, reafirma-se na telona, como sendo uma mistura de David Niven com o supracitado Zé Trindade. Eterno e fiel leitor do P de Pop, o advogado carioca Pierre Pontes Gaudioso certa vez perguntou a este blog qual é a fórmula que garante viço ao personagem. Na estreia do longa, em 2019, Pierre olhava o filme na tela com olhos de adolescente de 16 anos, encantado com a sagacidade marota do Zé Pilintra metido a viking imortalizado por Falabella. Simples, Dr. Gaudioso: existe ali um respeito por toda uma linhagem picaresca que vem de Oscarito, do Alberto Sordi felliniano de "Os Boas Vidas" (1953), de Mesquitinha.

É de Falabella (autor do roteiro, com a colaboração do olhar humanista de Sylvio Gonçalves) que vem o segundo toque de personalidade de "Sai de Baixo": o espírito chanchadesco. Uma chanchada com um padrão anos 1950, à la Lulu de Barros ("O negócio foi assim") e Victor Lima ("Massagista de madame"), com que os quiprocós da trama se sucedem. É uma linha narrativa que cresce em harmonia com a energia de levante feminino que Cris injeta em seus planos, também na figura da matriarca do Arouche, Cassandra (Aracy Balabanian, motor das tiradas autorreferenciais do longa), e da tia Jaula (papel que Tom Cavalcante constrói com picardia).

Produzido por Daniel Filho, o enredo é Oscarito na veia: saído da prisão, Caco aceita levar uma mala de joias em uma excursão da agência Vavátur até Foz do Iguaçu e Magda também, o que gera uma confusão entre as valises. Enquanto isso, o criminoso Banqueta (Lúcio Mauro Filho, com ares de José Lewgoy em sua vilania marota) tem conta a acertar com Caco nessa viagem, assim como sua irmã gêmea, Angelita. Na tela, a jornada é um mero gancho pruma sucessão de gags imparável.

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"Família Trapo" do Plano Real Foto: Estadão

Como toda boa chanchada, num esquema trinário (fala 1, fala 2, fala 3, piada) o longa se expressa por uma embocadura cronista, focada na falência da classe média, no apego a uma tradição que depende de dinheiro para ficar de pé. Entre um oceano de piadas, bem editadas, na montagem de Tainá Diniz e Eduardo Hartung, temos um estudo sociológico sobre a inversão da pirâmide econômica brasileira. Nele, discute-se a emergência dos grupos antes tratados como invisíveis e que, agora, com o consumo, ganham subjetividade no discurso da representação da arte. É o caso de Ribamar (o segundo papel de Cavalcante), porteiro que, ao ganhar um apartamento próprio, passa a hospedar seus patrões do passado. As cenas dele com Cacau Protásio (com quem Cris rodou "A Sogra Perfeita") são de arrancar o ar do pulmão.

Candidato fenômeno de audiência, "Sai de baixo" passa indolor pelas retinas, mas bate, com discrição, em mazelas morais do país. Ele ainda depura a química entre seus intérpretes, com uma apoteose para Falabella, que em suas polivalentes atividades, por vezes, concentra no teatro um talento como ator que oxigena o cinema nacional, hoje afogado no naturalismo. E já já estreia o novo trabalho dele como realizador: o poema "Veneza". Este, Dr. Gaudioso, vai mexer com seus sentimentos também. Nesta quarta, revendo as proezas de Seu Antibes, a penha de suas memórias de fã vai renovar sua solidez de rocha. Abraço do amigo. Boa noite, Pierre.

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