Rodrigo Fonseca Delicado estudo sobre o desmantelo das recordações, equilibradas no cabo de aço da vivência a dois, "Noites de Alface", longa-metragem recém-chegado às telas, dá muitos presentes às suas plateias, começando pela escalação de Marieta Severo e Everaldo Pontes, e ainda oferece a seu público a chance de comemorar os 40 anos de cinema de um ator de talento GG que fez florescer a fantasia na infância de muita gente: Romeu Evaristo. No papel do carteiro Aníbal, o representante dos Correios na trama dirigida por Zeca Ferreira, empresta toda a potência da tela grande a um artesão do lirismo nascido na Penha e criado em Caxias, hoje com 65 anos. E em pouco mais de um mês, ele volta aos cinemas, no elenco de "Doutor Gama", de Jeferson De. Ali, num contexto de luta contra os fantasmas da escravidão, Romeu promete usar todo o ferramental técnico que vem lapidando desde os anos 1970, quando ficou famoso na TV no papel do Saci da série "O Sítio do Picapau Amarelo", do qual participou do começo ao fim, desde a estreia do programa, na Globo, em 7 de março de 1977, até o episódio final, em 31 de janeiro de 1986. Ele tinha, então, 21 anos, mas já trazia no currículo uma novela, "João da Silva", da qual participou em 1973, na TV Educativa. "Minha família ouviu no programa de rádio da saudosa Daisy Lúcidi que estavam abrindo vagas para boy na TV Educativa. Eu fui lá. Chegando, descobri que estavam abrindo vagas pra ator na novela. Resolvi tentar. Cheguei às 9h15 para fazer uma seleção que seria às 14h e gastei o dinheiro que tinha comprando uma revista, para passar o tempo lendo. Sempre gostei de ler. Vi chegando os concorrentes, que pareciam ter experiência. Experiência nisso, experiência naquilo. Eu só tinha feito Teatro no colégio. Chegou na hora, improvisei. Improvisei e passei. Tô aí até hoje, agora trabalhando com a Marieta, com quem eu fiz 'Carlota Joaquina', e com o Everaldo, um sujeito talentoso de muita simplicidade. Todo grande ator é simples. Quando eu cheguei no set do 'Noites e Alface', senti que o Zeca estava me dando um presente", conta Romeu, que hoje vê sua filha, a atriz Dandara Mariana, despontar como um dos mais criativos talentos da nova geração de estrelas. "Ser ator é uma coisa que demora. É um ofício baseado em um processo contínuo de refinamento e de compreensão. Estou nessa há 48 anos e, a cada dia, eu me vejo aprendendo". Seu pai, Sebastião Francisco Cabral, foi um artífice da escultura, que trabalhava entalhando estátuas. Com ele, Romeu aprendeu que entalhar começa pelos pés e se consolida nos olhos. É mais ou menos como ele faz seus personagens. E é como contagia colegas de set. "Falar do Romeu é falar de amor", diz a atriz Taís Araújo. "O Romeu é da minha família desde que fiz 'Xica da Silva'. Ele virou muito amigo dos meus pais, muito amigo nosso, então é família para mim. Para além disso, a gente tem um ator muito especial, muito intuitivo, sem vergonha de ser intuitivo e de usar toda sua intuição em prol da história e dos personagens que ele está construindo e fazendo. Acho que ele tem um valor e uma brasilidade singulares no trabalho dele. A gente tem muito que prestar atenção e aprender com o Romeu". Na televisão, fora o "Sítio", Romeu percorreu uma estrada invejável no humor, em programas como "Zorra Total". "Antes de os meus primeiros filmes ('Rio Babilônia' é um dos primeiros) e do 'Sítio', eu fiz um projeto com o Nelson Pereira dos Santos, chamado 'Nosso Mundo', sobre duas crianças perdidas, que acabou não saindo. Depois fui fazer 'Jubiabá' com ele. Nelson me ensinou muito. Com ele eu fiz drama. Sempre fiz drama. Mas percebi, desde cedo, que, por todo o preconceito que existe no Brasil, um ator negro que só faz drama só teria trabalho de três em três anos, de cinco em cinco anos. Daí fui pro humor", diz Evaristo, que arranca risos em sua participação em "Elvis & Madona", prêmio de melhor roteiro no Festival do Rio 2010.
Mas quem já trabalhou com ele no terreno da gargalhada sabe o quão criativo ele é. "Romeu sabe imprimir brasilidade em tudo o que faz de maneira muito consciente", elogia o ator e diretor Anselmo Vasconcelos, que esteve anos a fio na trupe do "Zorra". "Ele leva para a cena elementos dignos da tradição da chanchada. É um ator batalhador". Na televisão, a novela "Bom Sucesso", um fenômeno de audiência escrito por um par de bons cineastas - Rosane Svartman e Paulo Halm - e repleta de cuidado com a representação do subúrbio, fez dele um ímã de elogios, no papel de Fabrício. "Quando o (diretor) Luiz Henrique Rios sugeriu o nome do Romeu Evaristo para novela, fiquei super entusiasmada e achei muito bacana", conta Rosane Svartman. "Tive pouco contato com o Romeu Evaristo, até que o lançamento do livro sobre televisão do Valmir Moratelli. Ele me convidou para uma mesa e o Romeu Evaristo também. Ali tive o prazer de conversar com ele sobre a novela, porque não tinha falado até então. Ele encontrava o Luiz Rios no set e os outros diretores também. Mas nós, roteiristas, vivemos em uma caverna. Nesse dia, ele me deu várias dicas e falou várias coisas que ele pensava, falou de conhecer bem o território e conhecer algumas pessoas de lá. Perguntou se poderia falar algumas coisas e deu algumas ideias. Algumas a gente seguiu... e eram ótimas ideias. Foi realmente um prazer e um privilégio trocar com Romeu".
Com o lançamento de "Noites de Alface", na quinta-feira, as múltiplas proficiências de Romeu ganham holofotes. A chegada às telas de "Doutor Gama", no qual ele vai interpretar o pai do abolicionista, enche seu peito de orgulho. "Tudo num personagem começa nos pés, no andar. O meu carteiro em 'Noites de Alface' é alguém que percorre Paquetá toda a pé. É um andar muito característico", diz Romeu. "Gosto de entalhar bem meus personagens, como meu pai entalhava suas estátuas. Entalhar nos pés até chegar nos olhos... no olhar".