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De antena ligada nas HQs, cinema-pipoca, RPG e afins

'Platoon' de Ang Lee renova o arsenal estético do diretor

Por Rodrigo Fonseca
Atualização:
De origem inglesa, o estreante Joe Alwyn encarna todas as angústias da juventude americana frente ao militarismo em "A Longa Caminhada de Billy Lynn", um dos filmes mais subestimados pelo Oscar 2017  Foto: Estadão

RODRIGO FONSECAUma par de frases, "Somos uma nação de crianças, Billy. Vamos pra outros países para crescer", pode ter sido responsável pelo fim do caso de amor entre Hollywood e Ang Lee, justificando a gélida recepção ao mais recente (e mais arrebatador) filme dirigido pelo cineasta taiwanês: o arrebatador A Longa Caminhada de Billy Lynn (Billy Lynn's Long Halftime Walk), inédito no Brasil após uma fracassada carreira em circuito nos EUA. Chega a assustar o fisco que esta produção de US$ 40 milhões, uma espécie de Platoon anos 2010, foi nas bilheterias americanas, onde seu faturamento parou em US$ 1,7 milhões. Mundo afora ela arrecadou cerca de US$ 29 milhões, o que não deu para zerar o investimento gasto. Mas nós, brasileiros, que não comungamos do mesmo credo (leia-se neurose) militarista dos Estados Unidos, vemos neste filme não um gesto de narcisismo às avessas, mas sim um rearranjo, com exuberância, de todo patrimônio estético que Lee construiu ao longo dos 35 anos de cinema que completa agora. Seu primeiro curta-metragem, I Wish I Was by That Dim Lake, foi feito em 1982 e, de lá em diante, ele estabeleceu uma dos mais prósperos legados da Meca Hollywoodiana, com dois Oscars de melhor direção no currículo, por O Segredo de Brokeback Montain (2005, pelo qual ganhou ainda o Leão de Ouro de Veneza) e As Aventuras de Pi (2012). Ele ainda ganhou um segundo Leão veneziano, por Desejo e Perigo, em 2007. Porém, nada disso comprou o perdão da América frente a seu escárnio contra o DNA bélico de seus anfitriões, para quem ele é "o asiático da casa".

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Tamanho desprezo, em faturamento e em arrecadação, soa inexplicável diante do vigor plástico e do esmero em dramaturgia que A Longa Caminhada de Billy Lynn traz ao subverter chavões dos filmes de guerra de autocomiseração. Primeira transgressão: traumas de combate são elementos de última importância na trama, da mesma forma como a exaltação do heroísmo vai sendo diluída quadro a quadro. Não existe também o discurso (surrado desde os tempos de Amargo Regresso, feito em 1978 pelo grande Hal Ashby) da inutilidade da guerra. Eticamente, sabemos que ela é inútil e Lee tem plena consciência disso. Mas ele sabe também que guerra é mais valia: todo conflito armado é uma fonte de renda, um pilar econômico, sobretudo num país como os EUA, onde as operações militares e a produção de armas estão entre os negócios essenciais ao PIB deles. Mais enriquecedor será ele mostrar a equação econômica da guerra sob novas variáveis, na raiz quadrada do oportunismo, e, nesse empenho, o livro escrito por Bem Fontain, no qual o longa-metragem se baseia, serve com perfeição. Nele, há uma tropa cujas ações - no Iraque e nos States - servem com perfeição ao interesse de empresários e da mídia, permitindo um debate plural sobre o lugar do guerreiro.

Shroom (Vin Diesel) à frente da tropa  Foto: Estadão

Este é o tema central desta história de segundo campo (termo usado para narrativas cujo foco está no discurso filosófico, quase sempre político, em sua base, e não no desenrolar da jornada do herói em si) cujo eixo de compreensão são as experiências de um rapaz de 19 anos, Billy Lynn, que volta das areias iraquianas como herói. Além do uso inusitado de cores que faz (num processo de sinestesia raro gerado pela resolução 4K), Lee impressiona de cara pela escalação do inglês Joe Alwyn como Lynn: estreante, o guri tem um olhar mesmerizante, no qual traduz sua angústia. Aliás, a angústia em foco não é só a dele, mas de toda a juventude americana, empurrada para brigar e matar nos campos de batalha do Oriente Médio sem entender o motivo. Lynn tem lá seus fantasmas, tem lá mágoas de família (a principal é sua irmã mais velha, vivida nas raias da perfeição por Kristen Stewart) e teve perdas no front. Mas não estamos em um filme de farda convencional: nada disso vai detê-lo, nada disso será o moto das cenas, até porque, A Longa Caminhada de Billy Lynn é bem menos personalista do que parece, abrindo-se para outros personagens e para vivências que enriquecem Flynn como protagonista, como seu caso com a líder de torcida Faison (Makenzie Leigh), numa troca de saliva rápida, safadinha, doce na medida certa, mas sem muita idealização. Aliás, não cabe idealismos neste filme, só ressaca, encarnada no trâmite entre Lynn, seus colegas (em especial o "irretrocedível" Sargento Dime, papel de um inspiradíssimo Garrett Hedlund) e o empresário esportivo Oglesby, cartola do time de futebol americano de Dallas, vivido pelo comediante Steve Martin num registro pouco usado por este titã das artes, nunca devidamente reconhecido.

Steve Martin fora do riso: futebol e vilania  Foto: Estadão

A medida de humanidade de A Longa Caminhada de Billy Lynn, manifestada como uma espécie de Grilo Falante nos ouvidos do Pinóquio fardado vivido por Alwyn, é um sargento morto, o milico budista Shroom, vivido por um Vin Diesel veloz e furioso no esforço de se reinventar. Shroom é uma espécie de defunto autor, que reescreve os passos de Lynn não apenas por ser um vértice central de sua consagração em trincheiras no Iraque, mas por ser um espectro que leva a todos de seu comando a relativizar as certezas por trás da guerra. Sua aparição é sazonal, mas precisa, apta para fazer desta produção uma ácida crônica sobre a caserna e a volta ao lar, com ecos do que Lee fez no invisível (mas profundo) Cavalgada com o Diabo (1999). É o lado mais abrasivo do cineasta se fazendo arder, gerando algo mais sólido e urgente do que sua vertente metafísica (O Tigre o Dragão), numa forma de narrar de múltiplos plots, como era o sublime Tempestade de Gelo (1997). É o lado mais adulto e inquieto desse realizador que se impôs sempre pela elegância formal.

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