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De antena ligada nas HQs, cinema-pipoca, RPG e afins

'Ouroboros', um drink no inferno do teatro autoral

Por Rodrigo Fonseca
Atualização:
Anita Mafra e Manoel Madeira são um casal fadado à Eternidade da complitude em "Ouroboros", uma delicatessen de prazeres teatrais escrita e dirigida pelo ator Adriano Garib, em cartaz até 27 de março no Espaço Cultural Sérgio Porto  Foto: Estadão

RODRIGO FONSECA

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Wim Wenders, forte candidato a competir pela Palma de Ouro no Festival de Cannes deste ano com o thriller Submergence, repete a cada entrevista que dá, desde a sua consagração mundial, nos anos 1980, com Paris, Texas, a mesma frase: "O rock'n'roll salvou minha vida". A sentença espelha a maneira como o gênero musical embalou as angústias de sua geração, educada a fabricar uma interseção (nem sempre possível) entre náuseas existenciais e mais-valia: a cada acorde de guitarra, progressiva ou metal pesada, uma trilha analgésica se desenhava para artistas na casa dos 70 como o diretor alemão, numa crônica de um estado de espírito inconformado, num mal-do-século de porcas, parafusos e poeira de obra. Tem muito de Wenders e suas patologias do existir na peça Ouroboros, uma delicatessen de guloseimas teatrais escrita e dirigida pelo ator   

Adriano Garib numa tentativa (feliz e feroz) de metafísica da falta de projeto ético (e épico) nosso de cada dia. Tem, sobretudo, roquenrol do bom, como a banda de Berlim Rammstein e seu hit sabor sauerkraut IchWill, que entra num LP vincado pelo Tempo.

Amantes eternos presos pelo sangue Foto: Estadão

Tempo, aliás, é o oponente número um dos protagonistas, Ela e Ele, defendidos numa jira animal por Anita Mafra e Manoel Madeira, como numa liturgia de bote anunciado entre roedores famintos. A história deles fica em cartaz até o dia 27 no circuito carioca, no Espaço Cultural Municipal Sérgio Porto - corre pra ver, aproveitando que tem uma sessão nesta segunda, às 20h. No começo, quando o espetáculo abre com um ralentado (em demasia) jogral dos ritos diários de um casal, Ela fala pra Ele que conheceu outro, o investigador vivido por Guilherme Duarte, e que deseja expandir a intimidade com este para além de uma puladinha de cerca. A notícia é recebida por Ele com o peso do martelo de Thor: é a bigorna do desdém, é o prazo de vencimento de um amor de longa data, a morte anunciada de uma certeza. Pelo menos é o que parece, quando o texto de Garib - floreado por lirismo poético, em frases dignas de anotação tipo "Vi a Humanidade ir do Nada para o Pior" - aponta para uma trilha de desamor a dois, num recorte romântico, expressa na hilária sequência de um café da manhã com requeijão light. Mas, aos poucos, a familiaridade daquele contexto vai saindo de cena, deixando um tapete de fantasia a ser cerzido pelos atores centrais e pela sonoplastia (precisa) de Felipe Storino, que vira quase um personagem à parte, a mais. Um ruído de gelar o cóccix se faz ouvir quando Ela usa um gestual manual parecido com um feitiço. Tem alguma coisa de sombrio nisso e no fato de Ele parar os LPs com a força da mente.

No que ambos conversam sobre o cineasta indie americano Jim Jarmusch - o Wenders dos Estados Unidos, igualmente devoto do rock, de moléstias da inadequação e das bandeiras do tédio misantrópico e do imperativo categórico de amar como amam os anjos -, uma pista cai no nosso colo, a partir de uma citação do cult Only Lovers Left Alive (Amantes Eternos, 2013) e da presença de cálices de sangue. Os dois signos nos escancaram o fato de que Ela e Ele são vampiros, na estilização mais hollywoodiana do mito do sanguessuga. Não é metáforazinha pra intelectual sorrir: é vampiro mesmo, de caninos afiados e poderes espectrais. Nesse trecho, teatro e cinema alcançam um amálgama simbólico na dramaturgia de Garib: do Pop vieste, ao Pop voltarás, ou seja, as artes cênicas, que nasceram arte de massa, para as massas, e, em algum ponto da História do Consumo, passaram a ser vista como um entretenimento (?) de elite, vão a uma mitologia folhetinesca da literatura (vide Bram Stoker), canalizada e recriada pelo cinema, para assim renovar seus votos populares, seu diálogo com folclores. Despido de solenidades em sua armadura roqueira de Nick Cave e Lou Reed, Ouroboros está mais para cantiga de bardo, para trova de menestréis, do que para teses cênicas ou experimentações de linguagem do pós-moderno. É um drink no inferno da insuficiência, de nossas jugulares e de nossa alma.

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Luciana Pacheco brilha em vários papéis  Foto: Estadão

No alvorecer do desespero de Ele, surge uma figura feminina que redefine o rio que acreditamos ser Parmênides: o pré-socrático segundo quem nada muda. Um vulcão Kilauea chamado Luciana Pacheco entra em cena em erupção na pele de uma garota de programa cara, assertiva e implacável com o mimimi dos homens. Ao longo da peça, a atriz (de presença luminosa e de uma retidão cênica magnética) viverá outras garotas e uma femme fatale (ao pé da letra). E, a cada uma, o entendimento da busca reflexiva estética de Garib fica mais clara: se a medida da vida é a Morte, a figura de um vampiro, que não possui essa medida, revela o quão microscópica é (ou pode ser) o existir quando o verbo "enxergar" é usado na miopia burocrática dos sensos mais superficiais, ou seja, no insuficiente, no desperdício, no burocrático. Num diálogo, o autor responde assim a uma questão quase teológica, "Mas o que Deus quer de nós?": e Garib, "Deus quer que a gente seja forte".

 

Força é um substantivo que ganha um colorido contemporâneo (e político) na salivada encenação de Ouroboros - transcorrida em um cenário que parece um brechó à antiga ou um empório do Rio antigo, caracterizando uma antiguidade perpétua, que convive com o mundo de hoje. Sua conexão com o Presente se solidifica na discussão que abre sobre o emasculamento, a perda da potência masculina na sociedade contemporânea, a dos novos empoderamentos, representada na autocomiseração de Ele e na pálida hombridade do Detetive. Perto deles, a figura altiva de Ela, com uma apoteose nos decotes, parece uma valquíria pronta pra guerra dos deuses. Masculinidades são instâncias em queda, assim como a zona de conforto do realismo fantástico, que, como comprova Garib, não se sustentam como fábulas, mas como metonímia das nossas invenções (e ilusões) perdidas. Nietzschiano de cabo a rabo, o espetáculo por ele concebido é um indício do crepúsculo: o dos ídolos e das convicções. Sobraram as lendas... mas estas bebem sangue, demasiadamente humanas que são.

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