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O 'Pequena Miss Sunshine' de José Eduardo Belmonte

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Por Rodrigo Fonseca
Atualização:
Ingrid Guimarães e Fábio Assunção em "Entre Idas e Vindas" Foto: Estadão

RODRIGO FONSECA De Easy Rider - Sem Destino (1969) a Estrada Para Ythaca (2010), passando por filmes faróis como Paris, Texas (1984) e Central do Brasil (1998), o road movie consolidou-se como um filão narrativo, assumindo para si a tarefa de ser uma instância de catarse muitas vezes maior do que a dos demais gêneros dramáticos. No road movie, a estrada - seu esqueleto estético - é um espaço de purgação. Não é de se estranhar, pensando sob essa lógica, que Entre Idas e Vindas, em cartaz a partir de quinta-feira, seja o filme mais maduro do diretor José Eduardo Belmonte. Faz sentido, porque TODA a sua obra em longa metragem, erigida a partir de Subterrâneos (2003), baseia-se em almas no purgatório de si mesmas, sedentas de reinvenção. Basta uma olhada em sua obra-prima, Se Nada Mais Der Certo (2008), um thriller também rascunhado na linha "pé na estrada", para dimensionarmos sua predileção temática - e sua potência na direção.

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Um dos mais provocativos diretores do país - aliás, é surpreendente que uma obra cinematográfica do calibre da dele não tenha ainda desbravado continentes com o devido destaque -, Belmonte se faz autoral nesse interesse contínuo por subjetividades alquebradas. Ele faz filmes sobre gentes de espírito fraturado que, em situações de risco, acham uma felicidade provisória... ou clandestina. E há autoralidade ainda na assinatura particular em seus enquadramentos, sobretudo nos planos mais fechados. Esse devir autor se faz sentir na love story sobre quatro rodas que ele leva às telas agora, deslocando dois atores de grande talento do ambiente onde eles costumam ser catalogados: "o galã" Fábio Assunção e "a comediante" Ingrid Guimarães. Dispense os epítetos. Em Entre Idas e Vindas, onde a doçura é astrolábio, os adjetivos corriqueiros aos dois dão lugar à experimentação, à busca, ao desapego a arquétipos corriqueiros. Temos dois corpos doídos soltos no espaço. Só isso.

 

É difícil não pensar na kombi amarela de  Pequena Miss Sunshine (2006) - aquele filme-analgésico que, há dez anos, renovou a cota de açúcar dos road movies - diante da sensibilidade acurada de Entre Idas e Vindas para administrar dor, riso e mel sem se embananar na dose, sem ofuscar os diferentes núcleos que se cristalizam em sua jornada. Existem muitas emoções em jogo no roteiro de Belmonte e Cláudia Jouvin, sem uma hierarquia aparente entre eles. Por uma condição quase inercial da estrada - e não do cinema - sobressai aos olhos a love story entre o professor Afonso (Assunção, num estágio de fragilidade que vai se revelando aos poucos, numa aula de delicadeza dada pelo ator) e a gerente de telemarketing Amanda (Ingrid, enxuta no gestual). Mas esse sobressair se dá pela maneira inusitada como os roteiristas abordam o querer, numa perspectiva adulta, nas raias do perfil looser de ambos - e que tanto atrai o realizador, formado lá em Brasília. Há mais gente em cena. E todos eles têm conflitos. Conflitos de ordens distintas.

Existe a relação entre Afonso e seu filho, o pequeno Benedito (relação esta espelhada do real, uma vez que João Assunção carrega o DNA de seu pai Fábio). Existe a relação de liderança entre Amanda e suas três amigas: Sandra (Alice Braga), Cillie (Caroline Abras) e Krisse (Rosane Mulholland, ótima). Sandra está indo se casar (a viagem é uma despedida de solteira em bando), mas descobre traições do noivo. Krisse nunca ouviu "Eu te amo!". E Cillie (a mais bem resolvida, aparentemente) tem a missão de servir de ouvidos e ombros para demais, sem nunca abrir os seus demônios às demais.

As Graças de Belmonte Foto: Estadão

Elas vão esbarrar com Afonso e Benedito numa rodovia, quando o Landa deste homem que não sabe dar adeus ao passado quebra. Dali, um enfeitiçamento nasce entre ele e Amanda - e entre Benedito e Krisse. Existe uma dimensão quaaaaaaase fabular no ônibus que servirá de dispositivo de conexão para os personagens. Nele, as beldades de Belmonte são como as Graças da Mitologia: arrastam consigo grilhões do encanto, fomentando a fruição de sentimentos represados. Mas elas não são intocáveis. Em cada um ali naquele lotação existe uma angústia, que nos remete a situações ou a figuras coadjuvantes que estão fora da estrada, como apêndices abertos. E é por essas frestas que o roteiro Belmonte e Claudia ganha mais solidez: a geometria dramatúrgica aqui é um sistema de portas escancaradas para o mundo, imprimindo uma sensação de tridimensionalidade aos personagens, sobretudo a Afonso. O acerto de contas entre ele e a ex-mulher (numa participação da força da natureza Marisol Ribeiro) é daqueles sequências de esbodegar o peito.

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Sabor de Meg Ryan e Billy Crystal Foto: Estadão

Mas o resfolego não para por aí... De posse da mais popular das estrelas de humor do país desde os tempos de Dercy Gonçalves nas chanchadas - leia-se Ingrid Guimarães -, Belmonte poderia se limitar ao desafio de promover o deslizamento da persona cômica dela para o drama. Mas isso seria outro chavão cinéfilo. E chavões tendem a alimentar um senso de crueldade em Belmonte, vide o que ele fez com o conceito de heroísmo clássico em Alemão (2014), seu maior sucesso de bilheteria. Amanda, papel de Ingrid, não é só alguém que sofre. É alguém que dói, é alguém que ri, é a goiana que foi viver no Sudeste para se reinventar, é uma quarentona em busca de um amor com papo bom. É tudo isso e mais um pouco... o que põe Ingrid diante de um desafio de ir da defesa ao ataque, fazendo uso de toda a sua paleta de cores dramáticas. E, na madureza do talento, ela nos entrega não um personagem, mas uma pessoa, tendo em Assunção um parceiro à altura. É um bom Billy Crystal para nossa Meg Ryan, feitos um para (atuar com) o outro.

Embora os rasgos em Entre Idas e Vindas sejam por si só contagiantes, existe uma ruminação formal de igual ou maior relevo, não apenas na maneira como a montagem (de Bruno Lasevicius) espalha as viradas e os pontos mortos pela narrativa, mas no uso de texturas variadas na fotografia. Uma evocação ao Super 8 demonstra a ideia de que road movies geram memórias, numa gincana com o passado. E, de fato, todo mundo ali tem um relação credora com o Tempo, em seus pretéritos imperfeitos. Conjugar a imperfeição é a arte que Belmonte executa melhor, caminhando aqui pela trilha da afetuosidade, construindo um filme necessário para a atual temporada de ressaca no Brasil.

 

 

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