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O martelo da patrulha moral esmaga Thor

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Por Rodrigo Fonseca
Atualização:
Bruce Banner/Hulk (Mark Ruffalo) e a Valquíria (Tessa Thompson) tentam ajudar o Deus do Trovão (o ótimo Chris Hemsworth) nesta vergonha de continuação da franquia aberta em 2011. Film Frame..©Marvel Studios 2017  Foto: Estadão

Rodrigo FonsecaPobre de ti, Deus do Trovão, que não resistiu à castração moral dos novos tempos. Thor Ragnarok é indigno do teu nome. Por quê? Bem... Filmes de super-herói, sustentáculo da economia cinematográfica, são, por essência,  épicas de autossacrifício: existem cordeiros que se oferecem à imolação em prol da Humanidade. Não existe humor na espinha dorsal desse gesto. Pode haver gargalhada como apêndice, como efeito de oxigenação da tensão, como um respiro para o que há de bruto na peleja do sacrificado contra a moléstia moral que o leva a se arriscar em prol de quem precisa de auxílio. Pode e deve, pois o riso é um convite ao carisma. Mas esse riso não pode superpor a essência das narrativas super-heróicas, cuja gênese  quadrinística vem da ação, da aventura, da adrenalina e não da troça. Tem quadrinho pra rir e tem quadrinho de super-herói. É assim desde as primeiras viagens galácticas de Buck Rogers, em janeiro de 1929: a pedra fundamental pop do filão. Mas o diretor Taika Waititi não entendeu isso muito bem quando finalizou o corte do histérico Thor: Ragnarok, o mais vazio dos longas-metragens da grife Marvel. No desespero de dar ao conglomerado das bandas desenhadas um novo Deadpool - uma produção de US$ 58 milhões da Fox, que, em 2016, arrecadou US$ 783 milhões nas bilheterias -, o cineasta neozelandês resolveu substituir a seriedade épica comum aos vigilantes uniformizados por galhofas sucessivas: é piada atrás de piada, mesmo nos momentos em que elas são desnecessárias. O resultado beira um programa humorístico, um Jogo da Treta no solo de Asgard. O problema: Deadpool é um personagem terciário, um coadjuvante dos X-Men decalcado do Homem-Aranha pelo quadrinista Rob Liefield, que ganhou fama por sua iconoclastia oportunista, coisa que não cabe na figura do Deus do Trovão. Há um detalhe que o senhor Waititi parece não ter percebido: Thor é uma divindade, com aura mítica, cujos feitos carregam uma metafísica próxima do Sagrado. Thor merece respeito. E suas revistinhas sempre alimentaram essa respeitabilidade, pois ela está na medula do herói nórdico. Sem ela, sobre apenas um herói caído. E um filme caidaço... Até porque... assim como Thor não é descartável como Deadpool, Chris Hemswoth tem um peso trágico em seu leque dramático que Ryan Reynolds nunca alcançará. São talentos discrepantes.

 

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Realizador do marromeno O Que Fazemos Nas Sombras (2014), Waititi tem ralo domínio das dinâmicas de combate: seu cinema é chiste sob chiste. Por isso, Thor Ragnarok soa anacrônico como filme de super-herói. Parece uma comédia barata dos anos 1980, tipo um Sem Licença Para Dirigir (1988) com gente superpoderosa. O uso do Hulk beira o ridículo. O mais grave é o desperdício de uma personagem com ethos de tragédia, como Hella, a deusa da Morte. Nem Cate Blanchett salva sua figura, tendo algum diferencial apenas na sensualidade que injeta na vilã. O único ator que encontra aqui algum porto seguro é o fatigado Anthony Hopkins, na pele de Odin. Como este já desistiu de seu passado glorioso como intérprete, passando a desperdiçar seu vozeirão em qualquer bobagem, ele acaba se destacando aqui como jamais conseguiu nesta franquia asgardiana. Franquia cujo ápice veio em O Mundo Sombrio, de 2013, este sim um espetáculo divertido e tenso.

Com dramaturgia, num exercício de preguiça, Ragnarok é uma mistura de Odisseia com O Guia do Mochileiro das Galáxias: um Ulisses cheio de aretai cai numa jornada da qual não consegue sair, mergulhado num espaço sideral lisérgico, no qual se ouve Led Zeppelin. Essa mistura seria boa se o tempero do desvario não viesse excessivo, fazendo com que a cruzada de um deus para enfrentar a Morte em pessoa parecesse um episódio de Saturday Night Live. Pior que isso é a submissão de Waititi à lógica contemporânea do emasculamento, fazendo de Thor o que se chama hoje de homem difícil, ou seja, uma figura masculina destituída de sua potência. Hemsworth faz o que pode para entretar a plateia. Mas sob um martelo mais pesado que seu Mjölnir - o martelo da hipocrisia sexista - sobra a ele tomar catiripapos e sofrer humilhações. Por sorte, Mark Ruffalo e Idris Elba estão ali, respectivamente como o Dr. Bruce Banner e o porteiro divino Heimdall, para dar alguma dignidade ao filme. Mas a contribuição deles não isenta o cinema de super-herói da chacota. Sobra um filme indigno. Nota zero.    

 

 

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