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De antena ligada nas HQs, cinema-pipoca, RPG e afins

O cangaço de Alceu Valença nas margens do Rio São Francisco

Por Rodrigo Fonseca
Atualização:
"A Luneta do Tempo" tem sessão hoje em Projeto de Cinema no Rio São Francisco: inclusão pela arte na integração nacional  Foto: Estadão

RODRIGO FONSECA

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Musical macio como carne de caju, A Luneta do Tempo, filme-micareta do cantor Alceu Valença no posto de realizador, nasceu para a missão que vai executar nesta noite de sábado na cidade mineira de Ibiaí: convidar uma população carente de sala de exibição a viver duas horas de imersão radical no que existe de mais místico (e mítico) no cinema. A catarse esperada por aqui deve se repetir amanhã em Pirapora. Ambas as localidades de Minas Gerais integram o circuito itinerante do Projeto Cinema no Rio São Francisco, um dos mais longevos (e eficazes) gestos de inclusão social pelas vias da arte em voga no Brasil. Este ano em sua 11ª edição, ele vai contabilizar 25 mil espectadores, que dão seus primeiros passos na arte de assistir longas-metragens coletivamente, ao ar livre, a custo zero, com o troco de um sorriso. Lá se foram no percurso iniciado no dia 25 em Manga, lá nas relvas da linha imaginária da Bahia, quilos e quilos de terra batida pelos carros de uma equipe de 26 pessoas, coordenadas por Inácio Ribeiro Neves, idealizador desta caravana da coragem que, nos idos de 1976, quando era ainda adolescente, percorreu o "Rio da Integração Nacional" pela primeira vez, apaixonando-se pela vista e por suas águas. Sua paixão rendeu um trabalho de formação.

"Desde 2004, temos apostado em cinema nacional para atender à demanda dessas populações", diz Inácio, que trouxe ainda este ano a comédia O Bem Amado, de Guel Arraes, e uma pérola brasiliense: O Último Cine Drive-In, que serviu de atestado para o talento de Iberê Carvalho. "A gente passa por alguns lugares, como Pirapora, que já teve umas três salas de cinema no passado, mas que hoje precisa caminhar quilômetros para achar um local de exibição. E há lugares que nunca tiveram salas. Temos olhos virgens diante de nós muitas vezes".

O Lampião Irandhir vislumbra o Futuro  Foto: Estadão

Mas não há virgindade que resista aos prazeres do filme de Alceu. Baile perfumado a invenção (em forma de filme), A Luneta do Tempo reafirma a máxima mítica - seja na Bíblia, seja no Nordeste - de que "No Princípio, era o verbo". E o verbo, no caso do primeiro longa dirigido pelo músico, carrega uma dimensão de indignação e perplexidade contagiantes expressa em frases como: "O Poder é irmão da Polícia, que é prima carnal do Estado e de uma cega chamada Justiça". Mas não é só pelas palavras - sempre rimadas, mas arranjadas num fraseado pausado com bom gosto e musicalidade nunca fatigantes - que esta ópera severina nos contagia. É também pela imponência da imagem - sobretudo de uma sequência de combate armado de altíssima dosagem de adrenalina - que Alceu se impõe como um estreante repleto de singularidades, autenticidades e desapegos às obviedades narrativas na cena de novos diretores brasileiros.

Mais do que virtudes na condução de planos e coragem para errar e seguir (o que disfarça fragilidades de um roteiro por vezes emaranhado), A Luneta do Tempo traz em si uma dimensão reflexiva sobre a identidade mitológica do Brasil, brincando com toda a matéria-prima dos mitos. É um ensaio (imbuído de uma lucidez sabor Nietzsche) sobre a Permanência e sobre o retorno perpétuo de tudo o que configura a noção de "Povo", o que, no caso deste nosso país, envolve a disposição para tentar, a hora de saber correr e sangue para derramar. Mas todo o raciocínio mítico do cantor-cineasta ganha corpo a partir da reinvenção da figura de Lampião, entalhado em pedra e cacto por Irandhir Santos, em mais uma atuação irretocável. Aqui se vê um Lampião poeta, ao lado de uma Maria Bonita encantada pelo acaso, na pele bela de Hermila Guedes.

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Fotografado por Luís Abramo, numa câmera ora distanciada (quase documental), ora bêbada de ilusão felliniana, a produção começa com um enfrentamento de Lampião contra a Volante liderada por Antero Tenente (Servílio de Holanda). Este é derrotado pelo cangaceiro e posto de cabeça para baixo, jurando uma vingança eterna, que fica de herança para seu filho abrutalhado em meio a um Nordeste que, ontem e hoje, é abençoado pela passagem de um circo. Em seu picadeiro, o próprio Alceu é um palhaço, numa atuação coberta de açúcar. Ao trançar passado e presente, num fluxo onírico que se opõe aos profanos poderes da vingança, o músico-cineasta nos dá um filme tenso e vivo, capaz de resgatar a tradição do "ciclo do cangaço" em nossas telas, mais perto do santo guerreiro Glauber Rocha do que dos dragões do western americano. É Brasil na veia, assim como este projeto sonhado por Inácio e compartilhado por tantos. Que a alegria seja a mesma com O Último Cine Drive-In, que tem em Othon Bastos um messias para a nossa saudade cinéfila.

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