PUBLICIDADE

Foto do(a) blog

De antena ligada nas HQs, cinema-pipoca, RPG e afins

O 'balão branco' de Sandra Kogut ilumina a noite da Première Brasil

 

Por Rodrigo Fonseca
Atualização:

Rayane do Amaral busca pela mãe ausente em "Campo Grande", drama que veio de Toronto para brilha na luta pelo Redentor de melhor longa de ficção do Festival do Rio 2015 Foto: Estadão

Faltando quatro longas-metragens para encerrar a seleção competitiva de ficção do Festival do Rio 2015, com o pernambucano Boi Neon ainda na liderança do campeonato, Campo Grande, da carioca Sandra Kogut, avançou várzea adentro para marcar um gol capaz de desestabilizar o placar da disputa pelo troféu Redentor. Com aparência de cinema iraniano, em seu über-neorrealismo no drible das convenções naturalistas do audiovisual verde e amarelo, o novo longa-metragem da diretora de Um Passaporte Húngaro (2001) passeia por um Rio de Janeiro cinza e ensopado de chuva, do Leblon ao confins da Zona Oeste, reinventando a geografia do abandono (social) à luz da fotografia do cearense Ivo Lopes. Egresso do Festival de Toronto, este drama avança sem muitas palavras e, sobretudo, explicações, para narrar o que uma representante de uma alta classe média em queda faz quando duas crianças são deixadas à sua porta, sem razão aparente.

 

PUBLICIDADE

Fraturada por obras sem término à vista, a Zona Sul carioca de Campo Grande é o ponto zero de uma narrativa que se espalha pelo Rio sem nunca se descabelar ou cair em arroubos melodramáticos. Há pouco discurso e muita jornada. Saída de um casamento falido e cheia de bens empacotados para uma mudança jamais detalhada, Regina (Carla Ribas, sempre nas franjas da excelência) sabe, nos primeiros minutos da projeção que um casal de guris foi deixado à sua porta. Sua filha, Lila (vivida por uma força da natureza chamada Julia Bernat), que vai àquele apartamento apenas quando precisa, estranha o caso, e, mesmo em conflito com a mãe, deixa-se envolver, por encanto pelos garotos. Há todo um passivo emotivo da história de Regina e Lila que Sandra sugere, mas não explicita: espalham-se, no máximo, pistas aqui e acolá, como migalhas de resposta.

Ygor Manoel é a jovem revelação do longa de Sandra Foto: Estadão

Essa lacuna não é sofrida: ela mantém a personagem de pé, dando-lhe relevo, garantindo-lhe encostas e magma. É estranho para ela o que Rayne e Ygor (vividos por Rayane do Amaral e Ygor Manoel) fazem ali. Nem as crianças sabem. Tudo o que lhes foi dito pela mãe foi que ela voltaria, e que eles deveriam esperar ali. Ponto; parágrafo: alguém que fez parte da casa de Regina há tempos tem a ver com aqueles meninos. Mas sobre isso, nada deve ser dito fora o fato de que não se deve esperar nenhuma reviravolta radical. Sandra é uma cineasta de delicadezas e de observações. Mais do que resolver a intriga e solucionar o incidente incitante, interessa à diretora checar o efeito dessa intriga sobre os envolvidos, deixando Ygor (cujo desempenho é sufocante) conduzi-la pela mão, levando a gente junto.

Regina (Carla Ribas) e Lila (Julia Bernat): duas atrizes em estado de graça que merecem, juntas, o Redentor Foto: Estadão

Regina não é protagonista, talvez nem os meninos sejam. As fórmulas clássicas de protagonismo são espatifadas pelo filme. Todos têm peso equivalente, cabendo a Lila alguns minutos de epifania enquanto leva Love is Real, com ecos de John Lennon, ao piano, para trapacear a estrutura racional made in Irã do longa e apertar o coração da gente. Mas, valendo: não há como se sair impune de Campo Grande ainda que o preço cobrado por ele seja baixo. É o preço da contemplação e da confiança em uma diretora que pode repetir o feito de 2007, quando venceu o Festival do Rio com seu belo Mutum. Com a utilização de procedimentos próximos do léxico documental, uma geopolítica nova aparece ali: sua periferia não é a da exclusão. Não é favela movie. Sua periferia é a do abraço que vira abrigo: tudo aquilo que Regina e Lila precisam, sob a defesa de duas atrizes em estado de graça.

p.s.: O desempenho de Julia Bernat não tira o fôlego apenas em Campo Grande: a mocinha empresta viço e gana a Aspirantes, de Yves Rosenfeld, também em concurso. É um filme desigual, mas de grande potência em sua pesquisa narrativa, apoiado sobretudo na atuação magistral de Ariclenes Barroso, num trabalho merecedor do troféu de melhor ator.

Publicidade

p.s.2: Polêmico por vocação desde os tempos nos quais fazia o programa Documento Especial, na TV Machete, o diretor Nelson Hoineff passa a ocupar um trono entre os mestres do documentário brasileiro com 82 Minutos , o melhor filme de uma carreira longeva, coroada por sucessos como Alô alô Teresinha! (2009). A partir de uma estrutura investigativa avessa a cartilhas cartesianas, o cineasta explora os bastidores do carnaval carioca, tendo como eixo um desfile da Portela. Hoineff cria um ritmo de montagem vertiginoso que vai demolindo nossas certezas, num discurso de espelhamento, onde os fatos vão sendo ordenados num paralelismo de causas e efeitos. É o documentário de maior audácia de todo o festival. Maturidade plena.

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.