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De antena ligada nas HQs, cinema-pipoca, RPG e afins

Novo (e apavorante) Shyamalan renova a estética do diretor

Por Rodrigo Fonseca
Atualização:
Numa atuação acachapante, James McAvoy mostra uma das 23 personalidades (a criança) do psicopata que vive em "Fragmentado", produção de US$ 9 milhões, cuja bilheteria beira US$ 258 milhões  Foto: Estadão

RODRIGO FONSECAApesar da concorrência do obtuso O Chamado 3, que desperdiça 80% de sua duração de 102 minutos até nos apresentar sua primeira sequência graficamente assustadora, Fragmentado (Split), novo e (este sim) assustador exercício de M. Night Shyamalan pelas veredas do medo, continua sendo alvo do amor (e dos dólares) dos espectadores americanos, permanecendo há três semanas entre os filmes mais vistos nos cinemas dos EUA. No Brasil, o longa-metragem só chega ao circuito no dia 23 de março, mas virá carregado de elogios, , a maioria voltados para a condução febril do enredo sobre um sujeito com 23 personalidades que sequestra três moças em um estacionamento. Ecos de Psicose (1960) trovejam narrativa adentro, fazendo justiça à comparação entre Shyamalan e a práxis cinemática de Hitchcock, no que envolve a opção por sugerir em vez de escancarar, de criar clima ao invés de apelar para um grafismo pornográfico da violência.

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Desde seu regresso à zona de prestígio com A Visita (2015), o indiano que arrepiou os anos 1990 com O Sexto Sentido (1999) encontrou uma nova equação de trabalho na qual desenvolve uma das estéticas mais autorais de Hollywood nos dias de hoje: fazer filmes baratos, na fronteira do terror, com no máximo um astro, baseando-se na riqueza de seus enquadramentos e na concisão da montagem. O custo de produção aqui foi de US$ 9 milhões. Sua arrecadação, até agora, beira US$ 113 milhões. Viradas de roteiro - o trunfo de seus primeiros filmes - ficaram para trás. É na imagem que ele encontra o diferencial de narrativa e de sedução. O desempenho acachapante de James McAvoy, o jovem Professor Xavier de X-Men, é um ás e um chamariz. Mas a estrela do filme é a direção, em sua ouriversaria no emprego dos códigos do suspense, demarcando uma espécie de terceiro hemisfério na trajetória do cineasta, dando um indício do que poderá ser uma saga, a saga da Filadélfia, seu microcosmos.

O cativeiro à luz de Mike Gioulakis  Foto: Estadão

Entre 1999 e 2002, Shyamalan se impôs como arquiteto de uma metafísica ficcional de comunicabilidade infalível, expressa em três filmes que pareciam irmãos apenas pelo diálogo com a fantasia - O Sexto Sentido, a obra-prima Corpo Fechado e Sinais -, mas que apresentavam uma interseção mais estreita, filosófica. A história do menino que via mortos, o drama do segurança de estádio que descobria ter superpoderes e a via crúcis do líder religioso às voltas com uma invasão ET são - antes e acima de tudo - tramas sobre heróis que perderam a fé em si, sendo auxiliados por inocentes para reaver a autoconfiança. Dali, ele evolui para seu trabalho mais admirado, A Vila (2004), de uma fotografia de rigor incomparável, que assinalava seu interesse no que existe de oposto ao heroísmo, a vilania, expressa a partir de um olhar sobre a gênese do Mal.

Seu périplo pela fantasia deságua no esnobado A Dama da Água (2006), fábula sobre a estrutura dramática das histórias orais que deflagra um segundo polo em sua obra: a Natureza e seus perigos. Nesse hemisfério, plantas, animais (em forma de monstro) e fenômenos climáticos são os adversários. Nas raias do cinema-catástrofe, esta linha rendeu ao percurso de Shyamalan um grande filme (Fim dos Tempos) e dois desastres (O Último Mestre do Ar e Depois da Terra), no qual seu próprio estilo de enquadrar amoleceu frente ao parque de efeitos especiais à sua volta. Uma descida aos infernos do fracasso se dá, curada por uma série sóbria, Wayward Pines, que reata o diretor com a aeróbica do thriller e revive seu talento para dirigir atores com carga de astro, usando o melhor do cinismo inerente a Matt Dillon. E ali, a Maldade... como força, como entidade sem corpo... espalhada pelas ações mais perversas de homens e mulheres de psique fraturada, tornou-se a bússola de seu cinema, ganhando forma com A Visita (que só custou US$ 5 milhões e faturou US$ 98 milhões) e agora lapidação com Fragmentado. Este novo e arrebatador longa pode sedimentar a reputação dele de Midas do terror.

O vilão e suas vítimas  Foto: Estadão

"Há alguns anos, fui fechado por um carro enquanto voltava de uma reunião, lá na Filadélfia, e, quando tentei cortar o sujeito, ele acabou emparelhando comigo num sinal e, com uma voz ameaçadora, disse: "Não é só porque você faz cinema que você pode fazer o que bem quiser na vida". Aquilo me deu medo. E me fez pensar o quanto as situações de pânico podem ser cotidianas", disse Shyamalan, em sua passagem pelo Brasil em 2015, ao lançar a (genial) série Wayward Pines no Brasil.

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Nada é mais cotidiano do que a circunstância na qual um trio de jovens é capturada pelo personagem de McAvoy em Fragmentado. Após fazerem compras em um supermercado,  acompanhadas por um maior responsável, elas entram no carro dele e percebem que ele se demora no porta-malas. De repente, alguém se senta no banco do motorista. Mas não é o dono do carro. É um psicopata que as faz dormir usando um spray. Este homem tem várias outras pessoas morando em sua cabeça. Ele ora é um sujeito assustador, ora uma mulher que se acredita sedutora, por vezes uma criança com auréola de anjo mau e, às vezes, a própria Besta.

Ao longo de 117 feéricos minutos, vamos acompanhar a luta das moças para sair do cativeiro para onde o psi McAvoy as levou. É lá que ele, sob uma de suas personas provisórias, faz uma dança catártica (ou quase), que testa toda a escolha de cores (saturadas) da fotografia de Mike Gioulakis, que imprime aqui o mesmo tom enevoado de seu trabalho no seminal Corrente do Mal (2014). Há no filme a narrativa do captor e suas reféns, há a relação do psi com sua analista (especialista em múltiplas personalidades) e há a relação de uma das jovens com traumas de seu passado. Tudo isso vem encapado numa certa aura demoníaca que pode justificar o desequilíbrio psiquiátrico do protagonista - sim, aqui o foco é o vilão, não as vítimas. Esses três vértices se equilibram com elegância, conforme Shyamalan testa nossa pressão - e os limites da imagem - desafiando os meandros do horror como filão. Nos instantes finais, vem um mimo cinéfilo. Mas sobre este é necessário fazer silêncio. Melhor falar sobre as descobertas que o cineasta nos traz sobre a Ruindade em suas mais variadas - e inconscientes - formas.

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