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De antena ligada nas HQs, cinema-pipoca, RPG e afins

Navegação de cabotagem pelas águas épicas de Benedito Ruy Barbosa

Por Rodrigo Fonseca
Atualização:
Tarcísio Meira encarna os vícios de um Brasil oligarca como o coronel Jacinto de "Velho Chico", nova novela das 21h Foto: Estadão

Agasalhada na mortalha do luto por um filho que afogou-se no leito do São Francisco, a fazenda do coronel Jacinto, em Velho Chico, cheira ao aroma da perda no capítulo de abertura do que promete ser um marco na história da dramaturgia nacional, a julgar por uma luz atípica para os padrões dos folhetins das 21h. E, a julgar também, por um afã de quebrar com tabus do desejo, nos abraços suados de querência no qual uma Carol Castro metafísica se abriga no peito de Rodrigo Santoro. Lançado nesta segunda, com a ladainha da oração que leva o nome do santo celebrado no devir de sua correnteza, o novo folhetim das nove da Rede Globo, concebido pelo midas do campo Benedito Ruy Barbosa, com um texto desenvolvido por sua filha Edmara Barbosa e seu neto Bruno Luperi, devolveu ao horário nobre da emissora uma cútis rural há tempos desaparecida da linha noturna de shows da TV aberta. Mas essa devolução se dá pelo esforço do diretor Luiz Fernando Carvalho em esgarçar as fronteiras do Épico, refeitas na História, em forma de melodrama. Ambos os registros se bifurcam como afluentes do "rio da integração nacional", a um só tempo cenário e coadjuvante da agonia de Jacinto, personagem que mostra o quanto o titã chamado Tarcísio Meira ainda é capaz de reinventar... e nos surpreender. A noite foi sobretudo dele, soberbo.

Espinhos de Rosa: Rodrigo Lomabrdi é um Charles Bronson do mundo rural de Benedito Ruy Barbosa Foto: Estadão

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Temos muito pouco ainda para analisar a costura que Edmara e Luperi fizeram a partir da mitologia de Benedito: só se viu um couvert do que está por vir. Mas foi um couvert com gosto de Luchino Visconti em Morte em Veneza. Crocante e caramelizado em seus planos capazes de evocar o John Ford de Rastro de Ódio, na abordagem dos retirantes e seus bois magros, a novela carrega ecos do Sergio Leone de Era Uma Vez no Oeste ao resgatar um tempo perdido. Vemos uma década de 1960 acossada num latifúndio algodoeiro, entre coronéis e capitães fustigados por um marxismo tardio, na mais-valia de um Brasil arcaico. Um Brasil com uma única certeza: "É do silêncio do povo que vivem os opressores". A frase é mascada por Rosa, uma espécie de Charles Bronson fluvial encarnado por Rodrigo Lombardi.

Luiz Fernando Carvalho (de óculos escuros) dá instruções a Chico Diaz: vida seca de retirante numa atuação de esfinge Foto: Estadão

Sabe-se que a narrativa há de estender pelas décadas nas quais os descendentes de Rosa e de Jacinto vão brigar por terras, águas e honras que hão de se metamorfosear na liquidez dos amores da contemporaneidade. Só o Tempo será a testemunha do que há por mudar e do que há de ficar, como é o caso do olhar sedento por esperança de Chico Diaz, no papel de Belmiro, herança da prosa Moderna dos cronistas literários do Nordeste. Primo distante do Fabiano de Vidas Secas, Belmiro é um bicho a mais no zoológico de gentes que Diaz guarda em seu repertório cênico. Ele é a primeira esfinge de Velho Chico. Não deu tempo, em menos de uma hora de novela, para sabermos quem ele é - e, mais do que isso, o que ele quer. Mas deu para sentir que por ele passam os Brasis que sentem fome mas não se rende ao ronco na barriga.

Julio Machado é um Zeca Diabo faminto... e mau Foto: Estadão

Na noite de 14 de março, o folhetim pilotado pelo realizador de Lavoura Arcaica se polarizou com mais delonga nas duas gerações da estância de Jacinto. De um lado, está o personagem de Tarcisão: o senhor de terras com hábitos ancestrais do coronelismo: racista, machista, onipotente, assegurado pelo chumbo no 38tão de um Zeca Diabo esfomeado e caricato, chamado Clemente, vivido pelo (ótimo) ator Julio Machado. Do outro vem o filho de Jacinto, Afrânio, um meteorango kid da contracultura baiana, que bebe para curtir a tropicália de uma juventude em ebulição e para esquecer a tragédia da ausência do irmão morto. Afrânio foi o presente de Carvalho a Rodrigo Santoro, que volta às telenovelas após um hiato de 13 anos ombreado por um desempenho imaculado de Carol Castro. Ela na telinha, com seu bailado, com sua voz, com sua nudez, parecia evocar a Maria Santa de Patrícia França em Renascer (1993), pilar da parceria entre Carvalho e Benedito.

Um casal que promete ficar nas retinas: Iolanda e Afrânio Foto: Estadão

Juntos, Afrânio e Iolanda se entregam num Amarcord sabor Bahia que mexe com toda a tradição dos ritos cinematográficos do estado nas telas. Ele é o sinhozinho e ela a plebeia carente de ser amada. Pierrô e Colombina num Carnaval sem abadá, eles ultrapassam as CNTPs das novelas das 21h num coito bêbado de querer: um querer descabelado, fora da margem do naturalismo televisivo. Deles, nasce a centelha do melodrama romântico que Carvalho encara como um objeto de estudo, dissecando nossas certezas sobre a representação do pathos do verbo "amar". Desse estudo pode sair mais do que uma simples novela e sim uma reflexão sobre o lugar do gênero como uma bússola estética de nossa identidade.

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* Caiuá Franco assina as fotos de divulgação da TV Globo usadas aqui   

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