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De antena ligada nas HQs, cinema-pipoca, RPG e afins

Marxismo à moda Steinbeck enerva os palcos do Rio

Por Rodrigo Fonseca
Atualização:
Texto de 1937 da grife social do americano John Steinbeck (1902-1968) regressa pelos palcos, no CCBB, em uma montagem de soberba direção de arte  Foto: Estadão

RODRIGO FONSECA

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Nestes tempos de reverência às linguagens documentais, encaradas como postulados civilizatórios, o Real busca reinvenções nos mais variados veios ficcionais num garimpo de sentidos políticos no qual a obra do escritor John Ernst Steinbeck (1902-1968) brota como um veio de pedras preciosas. É raro o cinema reconhecer que o marco zero de sua entrada na Modernidade - antes do neorrealismo de Rossellini, De Sica & cia. - foi uma adaptação da prosa steinbeckiana: As Vinhas da Ira (1940), de John Ford, a partir do qual foram abertas as veredas do discurso na telona. Mas quem resgata agora o autor de A Pérola (1947) é o teatro, aqui no Brasil, nos palcos do Rio, com a estreia da (imperdível) temporada carioca de Sobre Ratos e Homens, adaptação do diretor Kiko Marques para o texto homônimo de 1937. Tá no CCBB até o dia 30 de abril, de quarta a domingo, com uma direção de arte (mérito de Marcio Vinícius) estonteante, que foi um argumento inestimável para a conquista do Prêmio APCA de Melhor Espetáculo conquistado pela produção em 2016, à força da impecável tradução do ator Ricardo Monastero, um dos cabeças do elenco.

Na versão teatral, lealdade é um sujeito oculto a cada oração. A palavra é o tema da obra de Steinbeck, mas sempre tratada por ele como sendo algo que custa o preço de sua fome - ou de sua ambição. A cobiça dos protagonistas de Sobre Ratos e Homens é tão pequena quanto as oportunidades de trabalho a eles oferecidas, no caso, em um mundo rural decadente, de colheita de cevada, onde a lavoura da esperança murchou sob o ataque dos gafanhotos da mais-valia. Feijão em lata é o único luxo no horizonte de George (Monastero, ótimo) e Lennie (Ando Camargo), um maciste fraturado por uma deficiência mental que o infantiliza.

Numa fazenda onde se paga pouco e se exige muito, os dois vão buscar labuta, atrás do sonho de arranjar o dinheiro necessário para custear uma fazendinha própria. Há entre eles uma amizade nas raias do paternalismo: o abrutalhado Lennie tem no seco, mas zeloso George um protetor. No abraço torto de George, Lennie encontra abrigo e alimento para seu devaneio de ter um cachorro e coelhos, muitos. Porém, seu jeitão Felícia (aquela dos Tinny Toons) de tratar os bichos vai gerar perdas irreparáveis nesse novo emprego, onde o racismo é senhor.

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Lennie abraça George: carinho filial  Foto: Estadão

Grita-se e desespera-se muito na encenação conduzida por Marques, mas não por um registro excessivo, e sim por uma quebra com o naturalismo mais rasteiro, indo para um lugar de abismo, entre o distanciamento e o trágico, que injeta combustível a um texto pouco valorizado no cinema. Gary Sinise fez dele um filme em 1992, recebendo uma indicação à Palma de Ouro de Cannes mais pelo desempenho de John Malkovich como Lennie do que direção - caretíssima e muito teatralizada - que destoava do tom de crônica de costumes da embocadura literária de Steinbeck. Na releitura em pauta no Centro Cultural do Banco do Brasil, esse espírito cronista volta na visão coletiva da inércia moral. A adaptação preserva a certeza de que o foco do texto está no conjunto de sintomas de erosão moral (via ruína financeira) daquele microcosmos e não nos dramas existenciais de dois amigos acossados pela miséria.

Um engenho cenográfico quase labiríntico salva aos olhos como um carro alegórico, mas um carro que não atravessa a apoteose ofuscando as demais alas. A vedete ali é a moléstia social da exploração do homem pelo homem e a sensação de que o tamanho de um homem é determinado pela economia, não por seus feitos. O resultado é algo doloroso, mas de lucidez iluminadora.

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