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'Mar de Dentro': um cult realista em gestação

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Por Rodrigo Fonseca
Atualização:
Manuela (Monica Iozzi) e Beto (Rafael Losso) pulam as ondas turbulentas da arrebentação da vida em "Mar de Dentro", sob a direção fina de Dainara Toffoli Foto: Estadão

Rodrigo Fonseca Percebe-se que tudo no estatelante longa "Mar de Dentro" é revestido de "verdade" - arrastando os grilhões do realismo com a leveza de uma pluma - quando Monica Iozzi, no limite das vísceras, diz, manhosa, um "Promete?", em meio à encenação de uma briga de casal. Ali, ela injeta uma casualidade capaz de desmontar qualquer aparente artifício da ficção. Tudo o que é "banal" ou "corriqueiro", no dia a dia, entra para o filme (também) sobre maternidade de Dainara Toffoli de modo tão orgânico que se ressignifica. E, ao se ressignificar, raspa uma fortificada fronteira de transcendência poética que só estudos muito minimalistas sobre uma vida em rotação alcançam. Logo, é impossível não pensar no (hoje sexagenário) "Cléo das 5 às 7" (1962), de Agnès Varda, ao acompanhar a trajetória da publicitária Manuela (Iozzi, numa atuação apoteótica) por uma metrópole onde tudo lhe é vampírico... tudo suga... até um bebê. Em cartaz no Rio, no Espaço Itaú, apenas às 15h30, de hoje até quarta, esse é um daqueles filmes que justificam rearranjos na agenda. É algo pra se ver na telona, com a grandeza da sala de exibição, pra decantar cada cor esmaecida que se amontoa na fotografia de Glauco Firpo, a fim de amenizar a secura do verbo "viver". É, mais ou menos, o que faz o mar na geografia de uma cidade partida, tipo o RJ. Pelo menos essa é a metáfora... uma das poucas... de um filme que despe a narrativa ficcional de qualquer quilate fantástico, para ancorar no trivial do cotidiano, tirando o máximo daquilo que aparentemente não se adjetiva, para mais ou para menos. Existe uma premissa de arranque no roteiro escrito pela realizadora em duo com Elaine Teixeira (esta está também no posto de produtora): uma gravidez inesperada e, até certo ponto, indesejada tira do prumo uma ás da Publicidade, a tal Manuela. Um "tal" entre aspas, pois ao longo de 97 sabiamente elípticos minutos (escarpados na montagem fluida de Willem Dias), a gente sai íntimo dela, amigos, em comunhão de bens com seu sofrer. A relação com um namorado ilustrador, Beto (Rafael Losso, com cinzel de ourives na fina construção de subjetividades), injeta ora desertos, ora garoas em sua forma racional de levar o dia a dia. Amante das arrebentações do oceano, aquarista, Beto é a medida de instabilidade no chão de cimento em que Manuela fincou sua objetividade.

 Foto: Estadão

Há também uma irmã calorosa, a Terê, vivida pelo reator nuclear de boas atuações chamada Gilda Nomacce. Terê está ao lado de Manu, para desterrá-la e fazê-la fluir. Terê é sopro, é hélice de um ventilador de teto em velocidade média. Beto é tufão. E em seu vendaval, ele tenta fazer com que ela aceite, com sabor, o devir mãe. Mas sem imposições. Não é de sua natureza harmoniosa fazê-lo. E mesmo se fosse, ela não aceitaria. Manuela é a tradução da impavidez num filme sóbrio. Mas até o mais impávido gigante sofre. E ela tem seus sofrimentos. Estes não são traduções sociológicas de ideologias, mas, sim, argutas tradições de angústias cotidianas. Algumas são pestilentas, como a do luto. Algumas são vivências de transformações impostas não apenas pela gravidez, mas pelos afazeres da vida materna, como ter que sair de uma reunião para recomendar maçã picada pra dieta do neném. O que conta é o modo contagiante como Dainara narra ações que podem parecer miudezas, mas que, na dramaturgia do "todo dia", são viradas bruscas em pistas sem quebra-molas. Lembra, de leve, o belo "24 Weeks", de Anne Zohra Berrached, drama alemão exibido na competição de Berlim, em 2016, e também centrado nas escolhas de uma jovem mãe. São filmes sobre mulheres que se sabem senhoras de seus corpos. E essa é a beleza dessas tramas. Acompanhá-las num mundo que as desafia com a democrática partilha de mágoas que a Vida, essa danada, gosta tanto de espalhar entre nós.

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