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De antena ligada nas HQs, cinema-pipoca, RPG e afins

MAM visita a 'Arábia' das Gerais

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Por Rodrigo Fonseca
Atualização:

RODRIGO FONSECA Mais ativa do que nunca, sob a curadoria de Ricardo Cota, costurando tanto retrospectivas de mestres quanto mostras de inéditos, a Cinemateca do MAM, o Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, anda batendo um bolão no Festival do Rio 2019 ao exibir atrações zero km do evento (como "A mulher da luz própria", sobre Helena Ignez) e cults nacionais recentes. O .doc da diretora Sinai Sganzerla sobre sua mãe, Helena, atriz genial e cineasta em fervente ebulição, será exibido às 19h. Mas, antes, às 14h30, Cota nos leva à "Arábia", um poema realista - ou neo-neorrealista segundo alguns - que arrebatou corações no ano passado, em vários cantos do mundo.

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A dica de sua grandeza quem deu foi o escritor Luiz Ruffato, em "As máscaras singulares", e seus conterrâneos das Minas Gerais, os cineastas Affonso Uchoa e João Dumans, ouviram...e transformaram em imagem: "Onde quer que estejas, em teu país ou em outro, és estrangeiro: ninguém tua língua compreende. Só, o deserto de estranhas veredas percorres. Conservas, no entanto, dos primeiros anos, o albor, quando tua cidade, madrasta e mãe, teus sonhos na noite fresca velava. A grande mão que afagou-te esmaga o peito agora. Ah! Somos apenas o que somos. Apenas". Isso aí, que a poesia do autor do cult literário "Eles eram muito cavalos" desvela, define "Arábia", o filme brasileiro de maior potência entre os lançamentos nacionais de 2018. Ele é potente em sua decantação lírica (ainda que de um lirismo desesperançoso) do realismo. É o cinema do "apenas", isto é, da percepção das singelezas (as belas e as dolorosas). Faz a síntese poética das Gerais, lar de Ruffato, de Carlos Drummond de Andrade, de João Guimarães Rosa e de um novíssimo cinema de observação, como se vê neste ensaio sobre a andança como expressão de identidade.

Perfumado à morte, pois tem como narrador as memórias de um trabalhador acidentado, que arriscou transformar suas memórias em épica, num rascunho de diário, "Arábia" abriu sua trajetória de encantamentos pelo Festival de Roterdã, na Holanda - um canteiro de narrativas com instinto de experimentação formal. De lá, correu 49 mostras estrangeiras, indo de San Sebastián, a maior da Espanha, a Yerevan, na Arménia, passando ainda por Cartagena, na Colômbia, num trajeto demarcado por dez prêmios internacionais. Junte a eles cinco troféus Candango, incluindo o de Melhor Filme, conquistado no Festival de Brasília de 2017 pela saga andarilha de Cristiano, vivido por Aristides de Souza. À exceção de um preâmbulo cheio de lirismo, todo o resto do filme de Dumans e Uchoa é uma espécie de monólogo dele, que corre em contraponto às imagens, quase como uma trilha sonora. E ela não direciona o olhar: este corre livre, como os pés de Cristiano, em sua errância quase inata. Esqueça virtudes heroicas, Cristiano é gente. É a gente: trabalha com mexerica aqui, vira metalúrgico ali, bebe com os amigos, joga papo fora, ama e se deixa amar por uma colega, num romance que condimenta sem muita pimenta seu jeito a esmo de viver.

Não há projetos ou sonhos nele: há deslocamentos. Cada posto é um aprendizado, para ele, para nós espectadores e para o jovem André (Murilo Caliari), que encontra o caderno de memórias de Cristiano (depois que este se machuca gravemente) no início do filme e engata a leitura, partilhando o saber do errar conosco. O maior achado: a simplicidade, argamassa com que o protagonista constrói seu mundo interior, entre perdas e ganhos.

Sem floreios ou adereços vaidosos na fotografia de Leonardo Feliciano, sempre atenta à composição de quadros rigorosos na habilidade de sintetizar os espaços por onde flana, a ferina câmera de Dumans e Uchoa lembra o dispositivo narrativo do mestre japonês Yasujiro Ozu (tipo o de "Começo de Primavera"). Segundo Ozu, impressões imediatas traem, observações ruminadas e pacientes libertam. Os mineiros filmam assim. E, apesar de a palavra ser a bússola de nossa jornada pelas mil e uma noites de Cristiano, há muita contemplação silenciosa em "Arábia".

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 Foto: Estadão

O silêncio cumpre o papel de ser o som da reflexão, da autodescoberta, das convenções de um mundo que institucionalizou a opressão. A Minas do filme não é bucólica, não é árcade: é uma Minas operária, onde o ator de trabalhar dá subjetividade ao indivíduo. É um movimento parecido ao que se viu no obrigatório Redemoinho (2016), de José Luiz Villamarim, ambientado em Cataguases, só que mais ameno.

Cartografia de rotinas mediadas pelas arte da sobrevivência, no corpo a corpo com a pobreza e a exclusão, "Arábia" é coroa do reino que Minas Gerais constrói para si no terreiro do cinema de invenção (e de exceção) de nosso audiovisual. Seus diretores de agora partem de uma geografia particular para erigir uma estética universalíssima, abraçada ao Real e, por vezes, à fabulação, como é o caso dos diretores André Novais Oliveira (em "Quintal" e "Temporada") e Ricardo Alves Jr. ("Elon não acredita na Morte"). Defendido na década passada por uma geração de realizadores nas franjas entre a videoarte e o documentário, como Marília Rocha ("Aboio"), Pablo Lobato ("Ventos de Valls"), Helvécio Marins ("Nascente") e (sobretudo) Cao Guimarães ("A Alma do Osso"), o estado que, lá atrás, na prosa, nos deu a verborragia de Fernando Sabino, Paulo Mendes Campos e Lúcio Cardoso, empodera agora novas vozes cinéfilas, em sintonia com a questão do feminino e da representatividade negra. Cineastas como Juliana Antunes (de "Baronesa"), Gabriel Martins ("Nada"), Ana Carolina Soares ("Estado Itinerante") e a dupla Dumas e Uchoa (conhecida antes por "A vizinhança do tigre"), mediados por uma nova crítica local (Marcelo Miranda é o principal farol analítico deles), criam uma nova ficção mineira. Surge deles uma espécie de odisseia da vida cotidiana, sem grandes assombros maiores do que a aventura de durar um dia a mais - e enxergar beleza nisso.

p.s.: Esta segunda, às 19h, o Estação Net Botafogo, casa de todos nós durante o Festival do Rio, exibe "Vitalina Varela", de Pedro Costa. Nos últimos 20 anos, nenhum filme do mítico realizador português teve espaço no circuito exibidor comercial brasileiro. Seu trabalho mais recentes foi laureado com o Leopardo de Ouro em Locarno, de onde saiu ainda com o prêmio de melhor atriz, dona Vitalina. Nele, acompanhamos a saga de uma cabo-verdiana que, aos 55 anos, ensaia mudar sua vida.

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