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Love Dog comove Locarno, que celebra Regra 34

Por Rodrigo Fonseca
Atualização:
O time de "Love Dog": Józefina Gocman, John Dicks e Bianca Lucas  Foto: Estadão

RODRIGO FONSECA Especializado em revelar novas promessas de autoralidade capazes de cruzar fronteiras, o Festival de Locarno se empapuça com uma iguaria autoral meio polonesa, meio mexicana, mas rodada às margens do Mississippi pela diretora Bianca Lucas: "Love Dog". Está na competição Cineasti Del Presente e pode dar à diretora polonesa uma láurea de peso, por seu olhar sobre a pandemia, assim como pode laurear seu protagonista, John Dicks. Juntos eles fazem uma espécie de inventário de cicatrizes do que a covid-19 legou para pequenas comunidades à beira do rio, a partir da experiência de regresso de um homem para casa, após a morte de sua mulher. A aproximação dele com um cão e seu contato com almas igualmente solitárias vai mostrar que a sociedade americana em peso parecia sob uma mortalha de luto naqueles dias.Que realidade social você encontrou às margens do Mississippi em meio às filmagens? Bianca Lucas: Mais assustadores do que os monstros que vivem naquelas águas, as cobras e os jacarés gigantes, era o trauma de toda uma geração que perdeu pessoas durante a covid, com o vírus ampliando problemas históricos. John, eu e nossa fotógrafa, Józefina Gocman-Dicks, fomos lá filmar uma história que eu comecei a partir de anotações em planilhas de Excel, e acabamos confinados juntos. Eu já havia passado pela Louisiana antes, em 2018, numa viagem de turismo que fiz com minha mãe. Mas, agora, foi mais radical. Naquele pico da covid, parecia que enfrentaríamos o fim do mundo.O que o silêncio de John, expresso poeticamente no filme, traduz? Bianca Lucas: Uma sensação de autoconfinamento, a percepção de que estávamos isolados em nossa própria dor, sem conexão física com o mundo. Fiquei muito grata pela maneira como John, que não tinha experiência como ator, interpretou. E ele e Jozéfina acabaram se casando.E como foi construído o desenho de som? Bianca Lucas: Como éramos só nós três, eu mesma captei o som com um microfone. Mas, depois, na montagem, feito por editores do México e da Polônia, precisamos retrabalhar na pós-produção muito do que foi feito. E usamos um poema como guia, que dizia que a reza em si é a resposta que temos do Sagrado.

Cena do longa polonês  

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Entre os títulos em competição, uma das narrativas mais desconcertantes de Locarno veio da Costa Rica: "Tengo Sueños Eléctricos", de Valentina Maurel, no qual uma adolescente de 16 anos (Daniela Marín Navarro) precisa aprender a lidar com a vida após a separação de seus pais, preservando em sua casa um gato que anda com incontinência urinária. Com uma câmera tensa e vívida, a diretora faz uma crônica do amadurecimento da garota, sempre mediada por sua relação carinhosa (mas nem sempre fácil) com seu pai, um poeta. Só faz crescer o entusiasmo de Locarno por "Regra 34", concorrente brasileiro ao Leopardo de Ouro de 2022, que tem tudo para sair do festival premiado. Julia Murat, sua diretora ganhou o Prêmio da Crítica, na Berlinale de 2017, com "Pendular", que caiu nos mimos de jornalistas de toda a Europa, sobretudo a ala germânica, contagiando a Federação Internacional de Imprensa Cinematográfica (Fipresci). E o mesmo pode se repetir este ano. Alemãs e alemães se rasgam em elogios pela desenvoltura da cineasta na construção de uma narrativa que discute o sexo por vias políticas, fazendo um ensaio maduríssimo sobre a repetição de práticas machistas no Brasil dos dias atuais. "É de um ritmo envolvente, inteligentíssimo na construção de conflitos internos das personagens", elogiava um jornalista inglês, radicado em Berlim, ao fim da projeção do longa.

REGRA 34 pode dar a láurea de Melhor Atriz para Sol Miranda Foto: Estadão

Trata-se de um ousado (e necessário) estudo sobre os fantasmas do sexismo na sociedade carioca, embora seja aplicável a todo o país. A condução hábil de seu roteiro explicita uma natureza sociológica no cinema de Julia, sem deixar de lado traços marcantes de sua obra autoral. Dança-se em cena, como sempre se vê em seus longas, em situações de catarse. E essa dança é sempre uma metáfora de um ardor por liberdade. Há já uma torcida aqui por prêmios para a atriz Sol Miranda, que arrebatou elogios com atuação fina. Igualmente forte é a dobradinha dela em cena com Bianca Comparato. Sol vive uma estudante de Direito, que curte um momento camgirl em sua vida privada, expondo sua libido na web. Em plena descoberta da variedade de prazeres que pode alcançar, ela embarca em práticas sexuais BDSM e encontra na asfixia uma curiosidade que fascina e põe em xeque suas novas formas de curtir sua libido. Ao levar um soco acidental de uma colega (papel de Bianca) em suas aulas de kung fu, ela fica ainda mais aberta à associação de atos dolorosos o sexo.

Ethan Hawke em "Zeros e Uns" Foto: Estadão

Igualmente potente, na lavra brasileira em Locarno, é o curta "Big Bang", de Carlos Segundo, que concorre na mostra Corti d'Autore. O filme segue a rotina de Chico (Giovanni Venturini), um técnico de conserto de fogões de Uberlândia. A premiação do festival acontece amanhã. O Brasil está ainda na sessão Cineasti Del Presente com uma experimentação sobre catividade "É Noite na América", de Ana Vaz. Ainda sobre Locarno... Quase um ano se passou desde que Abel Ferrara saiu desse festival com o prêmio de Melhor Direção por "Zeros e Uns" ("Zeros and Ones") e, até hoje, o filme segue inédito em cartaz no Brasil. Nele, Ethan Hawke interpreta um militar americano, conhecido como J.J. O tal soldado vai até Roma (onde Abel mora) para uma missão antiterrorista. É o que parece, pelo menos, até sabermos que ele tem um irmão gêmeo, que corre perigo em meio a uma célula de terror que parece jihadista ao expor questões religiosas. Tais questões só reforçam o traço autoral de Ferrara, que vai agora para Veneza com "Padre Pio".

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