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'Kursk': o Encouraçado Vinterberg

Por Rodrigo Fonseca
Atualização:

Rodrigo Fonseca Alerta-se, nas primeiras imagens do resfolegante "Kursk - A Última Missão", para os perigos da pobreza de uma Rússia que chegou ao fim do século XX numa instabilidade econômica para as classes antes acostumadas a (supostas) estabilidades e a valores humanitários da finada URSS. Estamos em agosto de 2000 e, momentos antes de partir para o mar, na tripulação militar de um submarino nuclear, o marinheiro Mikhail Averin (o belga Matthias Schoenaerts) precisa se despedir de seu relógio de estimação, usado para medir o tempo em profundidades abissais, a fim de custear as bebidas do casamento de um amigo. Mas a despedida vale a pena: a lealdade está acima de tudo. Na direção inquieta de Thomas Vinterberg (que, desde "A Caça", lançado em 2012, vive sua fase profissional mais poente), Schoenaerts cria uma figura heroica de tônus romântico, apaixonado pelo filho e pela gravidíssima mulher (Léa Seydoux, um acontecimento para este feroz filme). Averin sabe que o governo russo está escanteando sua outrora gloriosa Marinha, mais ou menos como Eisenstein mostrou em seu "O Encouraçado Potemkin" (1925). Lá víamos carne apodrecida servir de alimento a argonautas famintos. Aqui, há biscoito e atum prensado, além de vodka. A fome, no caso da trama baseada em fatos reais, é outra: falta aos colegas de farda de Averin amparo governamental. Um acidente durante um exercício afunda a embarcação subaquática Kursk, colocando seus tripulantes em risco de vida, cercados por armas (torpedos) de alta periculosidade. Espera-se a intervenção imediata do Estado, com a mobilização de forças navais estrangeiras em posições vizinhas ao local da tragédia. Há um navio inglês lá perto. O Comodoro David Russell (Colin Firth, com ecos de Alec Guinness em sua precisão) é a metonímia do poderio naval britânico: a parte de um todo solícito. A parte que nota e explana: "Os russos não querem aceitar ajuda para não admitirem que falharam". Mas e as pessoas que estão no Kursk presas, em risco de afogamento, açoitadas pelo frio de águas gélidas? Que falha poderia justificar a falta de suporte a eles? Que vergonha pode ser mais significativa do que um gesto humanitário de apoio? É aí que "Festa de Família" (1998), "o" filme do Dogma 95... "o" filme da juventude de Vinterberg, vem à tona. Ali, um abuso sexual de crianças ficou encoberto em prol de um protocolo de aparências. Da mesma forma, no já citado "A Caça", um protocolo de ódio, em forma de linchamento coletivo, ficava mais "bonito na fita" do que a tolerância, em relação a um homem injustamente acusado. Tem uma dinâmica parecida no Vinterberg de "A Comunidade" (2016), quando a apresentadora de TV Anna (Trine Dyrholm) quebra diante de mágoas reprimidas referentes a decisão do marido de ir viver com uma mulher mais jovem. Aparências encobrem ações efetivas e negligências daí decorrentes geram tragédias: isso é Vinterberg, o diretor-autor. Isso explica o interesse de um cineasta voltado para ambientes mais intimistas (tipo "Querida Wendy", "Dogma do Amor") por um enredo mais espetaculoso, de explosões, de correrias, nas raias do cinema catástrofe. Um enredo traduzido em imagens a partir de um orçamento de US$ 20 milhões, bancado por uma coprodução França x Benelux, com um elenco monumental: Max von Sydow, Pernilla August, Peter Simonischek, August Diehl são alguns dos reforços. Lançado no TIFF - Festival de Toronto, em 2018, o longa-metragem, recém-chegado ao Brasil, parece destoar da "prosódia" de palavras mastigadas, de elipses, de silêncios de Vinterberg, um dos realizadores de maior peso no bloco escandinavo, que, aos 50 anos, demonstra uma maturidade - em sua escolha de temas, em sua verve autoral e em sua direção de atrizes e atores - que falta a muitos de seus conterrâneos mais famosos. Esse intimismo de outrora se faz notar na maneira como se realça a claustrofobia no interior do submarino afundado (para além da obviedade da situação), na forma como o cineasta guia os enquadramentos de seu habitualmente exibicionista fotógrafo, o inglês Anthony Dod Mantle (de "Quem Quer Ser Um Milionário?"). Não vemos aqui o timbre espasmódico habitual de Mantle. E a montagem da septuagenária editora islandesa Valdís Óskarsdóttir (a mesma de "Brilho Eterno de uma Mente Sem Lembranças") cozinha a fogo baixo (mas preciso) o que poderia ser uma fogueia (de vaidades), medindo sua chama no diapasão da trilha sonora de Alexandre Desplat. Essa tropa técnica, com instrumentos de navegação estética calibrados na inquietação existencial de seu realizador, transformam o roteiro de Robert Rodat (baseado no livro "A Time to Die", de Robert Moore) em matéria vinterbeguiana - e num filme devastador. Pena que seu lançamento no Brasil pareça tão mal ofertado, como se no Rio, onde é necessária uma peregrinação para conferir o longa numa tela grande boa. A projeção no Cinemark Downtown, pelo menos, faz jus à força plástica desse tão subestimado projeto, que chega aqui quando Vinterberg já finaliza um novo lançamento. Há quem aposte na presença de seu inédito "Druk" (com Mads Mikkelsen no papel de um professor que faz do álcool um alívio e um instrumento de revolução) no 70º Festival de Berlim (20 de fevereiro a 1º de março) em briga pelo Urso de Ouro. Sorte a seu legado autoral.

p.s.: Protagonizado por Mawusi Tulani, Clarissa Kiste, Carolina Bianchi e Leonor Silveira, "Todos os Mortos", de Marco Dutra e Caetano Gotardo, vem sendo encarado como uma aposta de brasilidade na disputa pelo Urso de Ouro de 2020, às vésperas do anuncio dos concorrentes da já mencionada Berlinale 70.p.s.2: Vai ter Godard inédito este ano, e, ao que parece, será um filme de ficção mais narrativo, próximo de "Acossado" (1960), que comemora 60 anos em 2020. Jean-Luc Godard teria filmado, em abril, um drama sobre os Coletes Amarelos em protestos em Paris, usando como referência peças de Racine (1639-1699). Seu último longa, o experimento "Imagem e palavra", entrou na lista da "Cahiers du Cinéma" dos melhores filmes de 2019. Esse filme deu a ele uma Palma de Ouro Especial em 2018.

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