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De antena ligada nas HQs, cinema-pipoca, RPG e afins

Febril, 'Motorrad' é Nietzsche com 'Tom Jerry'

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Por Rodrigo Fonseca
Atualização:
Força da natureza em charme e talento, Carla Salle é "o" achado do elenco de "Motorrad": do TIFF pra CCXP  Foto: Estadão

Rodrigo FonsecaPassam-se uns sete, oito minutos (por aí) desde a aparição dos créditos de elenco de Motorrad sem que uma só palavra seja dita. Vemos um jovem encourado em jaqueta à la Marlon Brando (em O Selvagem), Hugo (Guilherme Prates) tentando surrupiar um carburador de um ferro-velho. Tudo se passa num silêncio que precede o esporro do susto: o grisalho dono da loja (Jayme Del Cueto) entra em cena com uma calibre .12 na mão, disparando contra o invasor. Mas mesmo no tiroteio não espocam palavras. Elas vão valer pouco neste filme, cuja abertura já eleva o nível de adrenalina numa luta do garoto para escapar dos tiros. É uma perseguição entre muitas deste quase cartum de sangue e trevas, que mais parece um desenho animado... parece uma aventura do rato Ligeirinho ou o Papa-Léguas fugindo do Coiote. Algo diferente do que o cinema brasileiro faz - ou talvez de tudo o que já fez, mesmo na seara da aventura e do terror. O senso de novidade se faz sentir por essa ausência de diálogo, que aponta, já na largada, estamos diante de um espetáculo cinemático: a escrita aqui não pelo verbo e sim pelo movimento puro e sem freios. Se quiser conferir o efeito, tem mais dele na grade do Festival Rio, onde este thriller dirigido por Vicente Amorim foi ovacionado na noite de quinta, em sua estreia nacional - antes daqui, ele passou pelo Festival de Toronto (TIFF), na seleção oficial. Na maratona cinéfila carioca, esta produção de L. G. Tubaldini J.R. e André Skaf tem sessão nesta sexta-feira, às 21h15, no Roxy, e no sábado, às 19h40, no Reserva Cultural.

Voltando ao início, onde vemos, sem delonga, um mapeamento do cenário - um Brasil mais interiorano, de pedregulhos e rios, propenso a rallys e expedições -, Hugo é detido pelo velho e parece estar prestes a levar um tiro. Mas aí a câmera de Gustavo Hadba (o fotógrafo, em seu melhor trabalho, de cores esmaecidas, turvas) se desgruda do refém, curiosa pela demora de o tira chegar, e fita o velho paralisado, estático. Por trás dele vem uma mulher, uma morena de olhar duro, que mexe com a libido de Hugo (com a nossa também) e, sem dizer muito, salva o rapaz e se gruda nele, como um encosto. A tal presença feminina ganha contornos que vão muito além do desejo graças à atuação de Carla Salle, talvez o grande achado deste Festival do Rio no que tange a descoberta, pelo nosso cinema, de uma atriz vigorosa. E ela esbanja vigor. É uma Elektra numa Cozinha do Inferno pedregosa e íngreme. O filme começa assim... com quase 15 minutos (ou mais) de fricção entre silêncios e engasgos. E aí entram os demais personagens. Os bons... Ou quase.    

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Hugo integra um grupo de motoqueiros, cuja liderança cabe a seu irmão mais velho, Ricardo, interpretado com peso heróico épico por Emilio Dantas, um astro nato, com recursos dramáticos capazes de surpreender o espectador mesmo na mais corriqueira falinha. Os demais personagens são vividos por Juliana Lohmann, Rodrigo Vidigal, Alex Nader e um iluminado Pablo Sanábio, perfeito na pele de Tomás, o membro do time com mais tensão no peito, por ser o que mais tem culpas no cartório da vida. Mas esse cartório não vai valer muito nessa trama, pois seus juízes aqui não têm conexões com crimes do mundo organizado, o mundo da linguagem. No enredo aqui, essa turma de motoqueiros, cuja única meta é de divertir, acaba levando de carona a morena gatinha que salvou Hugo. E esta oferece a eles uma dica de percurso: um atalho. Ao entrarem nele, as moças e rapazes passam a ser perseguidos por misteriosas figuras de preto, com motocas paramentadas para cantar pneu (e matar). E eles carregam facões e armas brancas afins sedentas de coágulos.

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Tem algo de O Predador (1987), de John McTiernan, na maneira como esses motoqueiros aparecem. Amorim, numa direção precisa, estabelece uma relação nítida de gato e rato entre eles e os amigos de Hugo. Não se sabe quem eles são, de onde vieram, nem a razão de quererem matar os jovens ali presentes. Os atos são típicos do Jason de Sexta-Feira 13, mas este tinha uma motivação mórbida (vingar-se daqueles que o deixaram morrer, quando menino). Estes, não. A metáfora do predatismo, que eles encarnam, aparecem em vários filmes do cineasta carioca, quase sempre em figuras de ordem, ou de poder político, que tentam silenciar os protagonistas de suas histórias. E, estes, quase sempre, embarcam em jornadas autistas, que parecem estar desconectadas do real. Mais ou menos como Hugo faz aqui, sem buscar entender, por exemplo, a cicatriz em seu pulso e a conexão desta com os motoqueiros. Ele é alheio à verdade em sua volta, pois é um típico exemplar da fauna amoriniana. Nosso diretor em questão é espécie de analista da inocência funcional em nosso cinema.

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Vicente Amorim nas filmagens em MG  Foto: Estadão

Desde sua estreia como realizador de longas de ficção, com o subestimado O Caminho das Nuvens (2003), Amorim se interessa por protagonistas cuja percepção é embotada por um olhar alienado (por vezes ideológico de mundo). Neste primeiro filme, Wagner Moura não olhava nada a seu redor, empenhado no objetivo de arrumar um emprego capaz de pagar a ele R$ 1 mil: mesmo que para chegar a esse trabalho ele precisasse arrastar a família inteira do Nordeste para o Rio, de bicicleta. Depois, no rosseauniano O Homem Bom, foi a vez de um professor de Literatura, especializado em Proust, que, em busca do tempo perdido da cultura europeia, não conseguia enxergar as cores mais sangrentas dos nazistas que rodeavam sua universidade e sua casa, sedentos por sua alma. Em Corações Sujos (2011), a crença de que o Eixo teria derrotado os Aliados na II Guerra, levava colonos japoneses no Brasil a se digladiar contra o Estado Novo (e suas sequelas) num banditismo étnico e social mediado pelo sonho de um Japão onipotente. E em Irmã Dulce (2014), havia a loucura do fervor e do altruísmo a qualquer custo como foco para uma (inflamável) discussão sobre o poder social da Igreja. É um oceano de personagens míopes, presos na Caverna de Platão. Mesma caverna que o diretor foi buscar nas rochas de Minas Gerais, ao filmar Motorrad e narrar a travessia de moças e moços alheios à maldade que nos acossa em situações onde o determinismo e a evolução das espécies força a escolha do mais forte.

Juliana Lohmann é uma das vítimas dos motoqueiros assassinos  Foto: Estadão

O que surpreende neste seu novo estudo de caso sobre como tirar o juízo humano das CNTP é a excelência narrativa plena no enfrentamento da imagética: esqueça palavras, respostas, justificativas. Motorrad é um fliperama: pessoas são gado fugindo do garrote dos motoqueiros de preto. Não há motivação maior do que sobreviver. E, nesse aspecto, como todo bom filme de horror, este longa ganha aí sua dimensão política: dada a desesperança de nossos tempos, lutar por um segundo a mais de respiração é a única forma de dignidade possível. E essa dignidade ganha mais força quando o amor está em jogo, como é o caso da relação fraternal entre os personagens de Prates e Emílio, e mesmo do encantamento que a morena chave-de-cadeia (papel da valquíria Carla) tem por Hugo. Mas existe o amor e existe a vida, sua inimga. E a vida aqui se dá numa dimensão sem regras outras que não a lógica nietzschiana do embrutecimento. Carvão aqui vira diamante. Mas um diamante sem brilho, pois os cordeiros em imolação não chegam a estabelecer relação com as aves de rapina que os acossam. É uma genealogia da moral impura, suja de fuligem, fedida a diesel.

Isso porque Motorrad é Nietzsche com Tom & Jerry, para nos lembrar, pela cartilha do filme de gênero, que, do pop viemos e ao pop voltaremos. Isso se a sobrevivência for viável... A discussão é sofisticada. E chega embalada por uma plástica viva, inquieta e... brasileira.

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