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É Tudo Verdade (e poesia) com Ana Carolina

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Por Rodrigo Fonseca
Atualização:
A cineasta Ana Carolina Teixeira Soares, que integrou o júri da Berlinale em 1978, vai ser homenageada pelo É Tudo Verdade 2022 com uma retrospectiva da porção documental de sua aclamada obra Foto: Estadão

RODRIGO FONSECA Ao elencar o cardápio de iguarias do É Tudo Verdade 2022, que vai de 31 de março a 10 de abril, parte online, parte presencial, no Espaço Itaú, Amir Labaki destacou uma vitrine para uma das festejadas realizadoras da América Latina de todos os tempos: a diretora Ana Carolina Teixeira Soares, eleita pela "Cahiers du Cinéma" um dos pilares da representação feminina nas telas. Mais conhecida por sua produção ficcional, vide o seminal "Mar de Rosas" (1978) e o doce "Amélia" (2000), ela brilhou na seara documental com três curtas-metragens e um longa, produzidos entre 1969 e 1975, que serão exibidos na plataforma É Tudo Verdade Play ao longo do evento. Essa homenagem coincide com a recente reverência internacional que ela recebeu por sua última imersão nos canteiros do drama: "Paixões Recorrentes", lançado em janeiro no 51º Festival de Roterdã, na Holanda.O que vai ter de Ana Carolina no É Tudo Verdade:"Lavra Dor" Direção: Paulo Rufino Brasil, 11', 1968 Sinopse: Co-produzido e co-roteirizado por Ana Carolina, em diálogo com a poesia homônima de Mário Chamie (1933-2011), o filme debate a reforma agrária no Brasil, de forma livre e poética, mostrando as lutas e dificuldades do trabalhador rural, além de questões sindicais, após o golpe militar.

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"Indústria" Direção: Ana Carolina Brasil, 12', 1969 Sinopse: Documentário que usa metáforas para tratar do desenvolvimento industrial no Brasil. Da tentativa de construção de uma indústria nacional à invasão, quase imediata, do capital estrangeiro.

"Getúlio Vargas" Direção: Ana Carolina Brasil, 76', 1974 Sinopse: Um pioneiro ensaio de arquivo sobre Getúlio Vargas (1882-1954), líder da Revolução de 1930, ditador do Estado Novo (1937-1945) e, depois, presidente constitucional (1951-54), nos 25 anos de seu suicídio no cargo.

"Anatomia do Espectador" Direção: Ana Carolina Brasil, 21', 1979 Sinopse: Representando uma média de opiniões, a atriz Stela Freitas responde a uma série de perguntas que procuram mostrar a figura do espectador de cinema do Rio de Janeiro, seus hábitos, suas preferências, como e por que assiste a filmes.

 Foto: Estadão

Dez anos depois de ter garimpado a pérola "O Som ao Redor", do Recife pro mundo, o disputadoFestival de Roterdã, na Holanda, em 51ª edição, redescobriu um Brasil que só Ana Carolina, aquela que deslumbrava o país na década de 1980 com "Das Tripas Coração" (1982) e "Sonho de Valsa" (1987), era capaz de enxergar e esquadrinhar. Um país que, como antecipou Marx, em seu estudo sobre a infraestrutura do mundo, era sólido e desmanchou no ar, envenenado de si mesmo, e não da mais-valia - ainda que essa tenha lá sua culpa no nosso cartório também. Foi o que o evento holandês aprendeu ao conferir "Paixões Recorrentes", o novo longa-metragem da cineasta paulista, rodado em setembro de 2019, num litoral do Paraná que fica ainda mais paradisíaco à luz da fotografia de Luis Abramo. A Ilha do Mel é a locação desse enredo que lembra "O Desafio" (1965) de São Saraceni, mas em versão litorânea, ambientada nas franjas da II Guerra. Como no cult de Paulo Cezar, com Izabela e Vianninha, o filme de A.C. é um rasga-coração. Um rasga-coração onde a diretora, que assina o longa com seu nome todo - Ana Carolina Teixeira Soares -, esbanja maturidade. Ela equilibra finissimamente o uso da palavra (numa narrativa loquaz, mas sem verborragias vagas) com uma aeróbica dionisíaca dos enquadramentos. Para fãs de sua obra, é quase uma mistura de dois de seus trabalhos: os já citados "Mar de Rosas" e "Amélia". Mistura essa onde cada close tem rigor de ourives. E há a titânica atuação de Luiz Octavio Moraes (bamba dos palcos cariocas) como um produtor de teatro que explora sua estrela, uma atriz francesa em eclipse: Madame Arras (Thérèse Cremieux).

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Biografia imperdível da cineasta Foto: Estadão

Há um outro sol em "Paixões Recorrentes", que, também vem dos palcos, assim como Octavio, e pode incendiar Roterdã. Ele se chama Danilo Grangheia. Hoje um dos atores mais fascinantes das artes cênicas nacionais, pela habilidade de metamorfosear seu ferramental dramático e cômico, pontuando cada fala com ironia, Grangheia bota cada sequência do longa no bolso. Ele vive o integralista Souza, dono de uma birosca na praia onde todos os personagens criam uma paragem. Frasista, sua boca molhada a golinhos de aguardente cospe aforismos como: "A vida de define por quatro verbos de ação: amar, combater, mandar ensinar". Seu bar entorpece a sede de realidade do argentino maluco e perigoso Chango (Luciano Cáceres) e do português Raolino Pombal (Pedro Barreiro), um advogado que bebe café com conhaque. Raolino tenta de todas as formas preservar seu casamento com Amada (Silvana Ivaldi), que não suporta mais o controle dele. Nas areias do Brasil, ela tenta fugir do antigo amor e se deixa encantar por um cultíssimo caiçara (Iran Gomes), que alterna pontos de umbanda com reflexões filosóficas. Numa estrutura sartriana à la "Huis clos", porém bronzeada e salpicada de areia, todas e todos defendem suas ideologias, mas nenhuma retórica sai soberana, fora a impressão de que "o inferno são os outros", principalmente os que estão no Poder. Tudo mundo ali parece emperrado pelo vetor da inércia histórica. Na esgrima de argumentos entre eles, o dublê de Zero Mostel vivido por Octávio Moraes incandesce a telona brincando com a mixórdia da decadência moral e com sua origem niteroiense.

"Paixões Recorrentes" marca a volta da cineasta paulista Ana Carolina, aclamada por "Das Tripas Coração" Foto: Estadão

Com a sabedoria de quem depurou as análises sociológicas no supracitado "Getúlio Vargas", em 1974, Ana Carolina regressou aos cinemas com uma alegoria sobre a intolerância em que nos afogamos ao polarizar tudo, sem fincar em pé em nada. No início de sua carreira, ela fez fama como cronista das hipocrisias burguesas, deslindando as falsidades das relações sociais. No doído "Paixões Recorrentes", ela resgata esse ímpeto de outrora, furiosa como antes, regurgitando a bile da História.

p.s.: A editora Graphite, do Rio de Janeiro, está lançando "Os Guardiões de Maser - Livro 1: A Segunda Lua", de Massimiliano Frezzato. Sua trama se ambienta em Kolonie, um mundo esquecido, que se transformou em um deserto povoado por alguns poucos humanos cuja memória foi tirada por anos de guerra e ignorância. Neste planeta hostil, um homem está procurando a Torre, sua única chance de trazer vida de volta àquele mundo. Mas os obstáculos são muitos, e o tempo está se esgotando. No gibi, Frezzato desafia as leias da gravidade numa narrativa retrofuturista, na qual a fantasia e a ciência convivem página após página, num colorido esplendoroso, capaz de evocar do "Nausicaä do Vale do Vento", de Miyazaki, ao sumido "Willow - Na Terra da Magia", de Ron Howard. É ação, beleza e surpresa em quadrinhos que reinventam as leis da Física.

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