De antena ligada nas HQs, cinema-pipoca, RPG e afins

'Dois Irmãos' é a versão amazônica de Caim e Abel


Por Rodrigo Fonseca
Antonio Fagundes é Halim, o Adão que pariu o Caim e o Abel vividos por Cauã Reymond na Manaus de Milton Hatoum  Foto: Estadão

RODRIGO FONSECASoa quase profético o fato de a estreia da minissérie Dois Irmãos - espécie de versão amazônica da parábola de Caim e Abel - coincidir com o dia da morte de Zygmunt Bauman, teórico da efemeridade segundo o qual "para ser feliz há dois valores essenciais que são absolutamente indispensáveis: um é segurança e o outro é liberdade, pois você não consegue ser feliz e ter uma vida digna na ausência de um deles, uma vez que segurança sem liberdade é escravidão, e que a liberdade sem segurança é um completo caos". "Liberdade" e "segurança" são traduzidos às avessas na obra literária de Milton Hatoum, de onde vem a nova experimentação narrativa do diretor Luiz Fernando Carvalho com o magma do melodrama: nas páginas do romance (homônimo à produção da TV Globo em dez capítulos), essas palavras que guiam o fenômeno humano são substituídas por "incompletude" e "incerterza". No texto de Hatoum não existe uma moral plena, tudo era líquido como as águas do Rio Negro ou como os amores de Bauman. Mas o episódio um da novíssima criação do realizador de Velho Chico troca essa liquidez por algo de sólido - talvez fosse melhor chamar de Moderno - ou até de perpétuo (tema central da TVgrafia de Carvalho), na opção por centrar o abre-alas do produto no patriarca, um Adão caído... no caso, Adão mascate, Adão de um Líbano muçulmano, dos Antigos, mas eterno. Halim é a gênese, o nesis de uma nova e provocante representação de Brasil.

Amparado por uma montagem helicoidal, que corre em torno de si mesmo, fazendo-se clara pela sensorialidade e pelas idas e vindas a um velho num rio (Antonio Fagundes, numa condição quase salomônica), Dois Irmãos abriu sua trajetória pela televisão pelo heroísmo romântico do futuro pai dos protagonistas (a serem vividos por Matheus Abreu e Cauã Reymond): o vendedor ambulante Halim. Três atores debruçaram-se sobre ele no capítulo 1, exibido na segunda: Fagundes, o ótimo Bruno Anacleto e um Antonio Calloni no mais absoluto estado de graça, capaz de dragar cada segundo da minissérie para si). Ficou a (boa) sensação de que estávamos sendo apresentados ao primeiro cidadão de um Éden fluvial, ao Adão daquele mundo arcaico nas convenções morais e na segregação não a diferenças individuais, mas a união delas, afinal de contas, lá convivem libaneses, judeus, marroquinos. Tudo ok na permanência deles, mas na miscigenação entre eles, como comprova o desejo de Halim de se casar com Zana, papel defendido com garbo de heroína trágica por Juliana Paes, uma das atrizes que mais amadureceram na TV neste país numa trajetória de 15 anos de cultura de massas. Zana é a força criadora, a Eva daquele Paraíso a ser conspurcado pela serpente da inveja e do recalque.

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Em estado de graça, Antonio Calloni ajuda Juliana Paes a alcançar uma de suas mais maduras atuações na telinha  Foto: Estadão

Pontuada por frases quase filosóficas sobre a fala por vezes gaga do Tempo (outro muso de Carvalho), a versão de Maria Camargo para o romance de Hatoum deixa transbordante para o olhar quase teológico do aclamado diretor uma dimensão bíblica de fraternidade em fúria, cindida na ponta da faca do ressentimento. O que falta de Moral castradora no livro sobra neste capítulo, não por uma repaginação do universo de Hatoum mas por uma inteligente opção de se jogar uma lupa sobre o mais rejeitado dos personagens. Halim é o esteio daquele lar em coma, que vai agonizar até os anos 1980, sobretudo durante a ditadura. Por isso, Maria e Carvalho nos deixaram claro de onde tudo vem, de quem é a costela de onde brota o devir fêmea daquela Babel florestal. Zana é a peste negra que vai jogar irmão contra irmão. Pelo menos isso, na forma de uma proteção excessiva da própria cria, é o que o capítulo um sugere ao nos levar por uma viagem cinematográfica por imagens de arquivo raras de Manaus nos anos 1920.

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Para a abertura, vimos uma estrutura de Velho Testamento bem parecida com a que Carvalho fez em Lavoura Arcaica. Mas houve uma quebra, para o riso, na presença do afetado casal Estelita e Abelardo, vividos por um Emílio Orciollo Netto com o espírito (e a graça) do grande palhaço italiano Totò e por uma Maria Fernanda Cândido deliciosamente divertida, nos moldes da Dercy Gonçalves das chanchadas. Eles são a parte bufa, cômica de um projeto de Brasil diferente do que a TV costuma retratar. Mas é um Brasil real. É difícil o realismo sobreviver ao barroco de Carvalho, mas o texto de Maria venceu esse duelo e respingou realismo - quase psicológico, na parte do jovem Halim - num saturado balé de contrastes. Resta sabermos a partir de agora quem são os gêmeos que o Adão do Islã pariu e o quanto eles vão levar Cauã a um outro patamar cênico em seu amadurecimento como ator. Talvez venha dele a liquidez que falta àqueles homens adestrados pelos desígnios do absoluto, do Absolutismo, do coronelismo velado. Talvez ele seja o Bauman de Manaus. É preciso conferir. A viagem será boa...

 

Antonio Fagundes é Halim, o Adão que pariu o Caim e o Abel vividos por Cauã Reymond na Manaus de Milton Hatoum  Foto: Estadão

RODRIGO FONSECASoa quase profético o fato de a estreia da minissérie Dois Irmãos - espécie de versão amazônica da parábola de Caim e Abel - coincidir com o dia da morte de Zygmunt Bauman, teórico da efemeridade segundo o qual "para ser feliz há dois valores essenciais que são absolutamente indispensáveis: um é segurança e o outro é liberdade, pois você não consegue ser feliz e ter uma vida digna na ausência de um deles, uma vez que segurança sem liberdade é escravidão, e que a liberdade sem segurança é um completo caos". "Liberdade" e "segurança" são traduzidos às avessas na obra literária de Milton Hatoum, de onde vem a nova experimentação narrativa do diretor Luiz Fernando Carvalho com o magma do melodrama: nas páginas do romance (homônimo à produção da TV Globo em dez capítulos), essas palavras que guiam o fenômeno humano são substituídas por "incompletude" e "incerterza". No texto de Hatoum não existe uma moral plena, tudo era líquido como as águas do Rio Negro ou como os amores de Bauman. Mas o episódio um da novíssima criação do realizador de Velho Chico troca essa liquidez por algo de sólido - talvez fosse melhor chamar de Moderno - ou até de perpétuo (tema central da TVgrafia de Carvalho), na opção por centrar o abre-alas do produto no patriarca, um Adão caído... no caso, Adão mascate, Adão de um Líbano muçulmano, dos Antigos, mas eterno. Halim é a gênese, o nesis de uma nova e provocante representação de Brasil.

Amparado por uma montagem helicoidal, que corre em torno de si mesmo, fazendo-se clara pela sensorialidade e pelas idas e vindas a um velho num rio (Antonio Fagundes, numa condição quase salomônica), Dois Irmãos abriu sua trajetória pela televisão pelo heroísmo romântico do futuro pai dos protagonistas (a serem vividos por Matheus Abreu e Cauã Reymond): o vendedor ambulante Halim. Três atores debruçaram-se sobre ele no capítulo 1, exibido na segunda: Fagundes, o ótimo Bruno Anacleto e um Antonio Calloni no mais absoluto estado de graça, capaz de dragar cada segundo da minissérie para si). Ficou a (boa) sensação de que estávamos sendo apresentados ao primeiro cidadão de um Éden fluvial, ao Adão daquele mundo arcaico nas convenções morais e na segregação não a diferenças individuais, mas a união delas, afinal de contas, lá convivem libaneses, judeus, marroquinos. Tudo ok na permanência deles, mas na miscigenação entre eles, como comprova o desejo de Halim de se casar com Zana, papel defendido com garbo de heroína trágica por Juliana Paes, uma das atrizes que mais amadureceram na TV neste país numa trajetória de 15 anos de cultura de massas. Zana é a força criadora, a Eva daquele Paraíso a ser conspurcado pela serpente da inveja e do recalque.

Em estado de graça, Antonio Calloni ajuda Juliana Paes a alcançar uma de suas mais maduras atuações na telinha  Foto: Estadão

Pontuada por frases quase filosóficas sobre a fala por vezes gaga do Tempo (outro muso de Carvalho), a versão de Maria Camargo para o romance de Hatoum deixa transbordante para o olhar quase teológico do aclamado diretor uma dimensão bíblica de fraternidade em fúria, cindida na ponta da faca do ressentimento. O que falta de Moral castradora no livro sobra neste capítulo, não por uma repaginação do universo de Hatoum mas por uma inteligente opção de se jogar uma lupa sobre o mais rejeitado dos personagens. Halim é o esteio daquele lar em coma, que vai agonizar até os anos 1980, sobretudo durante a ditadura. Por isso, Maria e Carvalho nos deixaram claro de onde tudo vem, de quem é a costela de onde brota o devir fêmea daquela Babel florestal. Zana é a peste negra que vai jogar irmão contra irmão. Pelo menos isso, na forma de uma proteção excessiva da própria cria, é o que o capítulo um sugere ao nos levar por uma viagem cinematográfica por imagens de arquivo raras de Manaus nos anos 1920.

Para a abertura, vimos uma estrutura de Velho Testamento bem parecida com a que Carvalho fez em Lavoura Arcaica. Mas houve uma quebra, para o riso, na presença do afetado casal Estelita e Abelardo, vividos por um Emílio Orciollo Netto com o espírito (e a graça) do grande palhaço italiano Totò e por uma Maria Fernanda Cândido deliciosamente divertida, nos moldes da Dercy Gonçalves das chanchadas. Eles são a parte bufa, cômica de um projeto de Brasil diferente do que a TV costuma retratar. Mas é um Brasil real. É difícil o realismo sobreviver ao barroco de Carvalho, mas o texto de Maria venceu esse duelo e respingou realismo - quase psicológico, na parte do jovem Halim - num saturado balé de contrastes. Resta sabermos a partir de agora quem são os gêmeos que o Adão do Islã pariu e o quanto eles vão levar Cauã a um outro patamar cênico em seu amadurecimento como ator. Talvez venha dele a liquidez que falta àqueles homens adestrados pelos desígnios do absoluto, do Absolutismo, do coronelismo velado. Talvez ele seja o Bauman de Manaus. É preciso conferir. A viagem será boa...

 

Antonio Fagundes é Halim, o Adão que pariu o Caim e o Abel vividos por Cauã Reymond na Manaus de Milton Hatoum  Foto: Estadão

RODRIGO FONSECASoa quase profético o fato de a estreia da minissérie Dois Irmãos - espécie de versão amazônica da parábola de Caim e Abel - coincidir com o dia da morte de Zygmunt Bauman, teórico da efemeridade segundo o qual "para ser feliz há dois valores essenciais que são absolutamente indispensáveis: um é segurança e o outro é liberdade, pois você não consegue ser feliz e ter uma vida digna na ausência de um deles, uma vez que segurança sem liberdade é escravidão, e que a liberdade sem segurança é um completo caos". "Liberdade" e "segurança" são traduzidos às avessas na obra literária de Milton Hatoum, de onde vem a nova experimentação narrativa do diretor Luiz Fernando Carvalho com o magma do melodrama: nas páginas do romance (homônimo à produção da TV Globo em dez capítulos), essas palavras que guiam o fenômeno humano são substituídas por "incompletude" e "incerterza". No texto de Hatoum não existe uma moral plena, tudo era líquido como as águas do Rio Negro ou como os amores de Bauman. Mas o episódio um da novíssima criação do realizador de Velho Chico troca essa liquidez por algo de sólido - talvez fosse melhor chamar de Moderno - ou até de perpétuo (tema central da TVgrafia de Carvalho), na opção por centrar o abre-alas do produto no patriarca, um Adão caído... no caso, Adão mascate, Adão de um Líbano muçulmano, dos Antigos, mas eterno. Halim é a gênese, o nesis de uma nova e provocante representação de Brasil.

Amparado por uma montagem helicoidal, que corre em torno de si mesmo, fazendo-se clara pela sensorialidade e pelas idas e vindas a um velho num rio (Antonio Fagundes, numa condição quase salomônica), Dois Irmãos abriu sua trajetória pela televisão pelo heroísmo romântico do futuro pai dos protagonistas (a serem vividos por Matheus Abreu e Cauã Reymond): o vendedor ambulante Halim. Três atores debruçaram-se sobre ele no capítulo 1, exibido na segunda: Fagundes, o ótimo Bruno Anacleto e um Antonio Calloni no mais absoluto estado de graça, capaz de dragar cada segundo da minissérie para si). Ficou a (boa) sensação de que estávamos sendo apresentados ao primeiro cidadão de um Éden fluvial, ao Adão daquele mundo arcaico nas convenções morais e na segregação não a diferenças individuais, mas a união delas, afinal de contas, lá convivem libaneses, judeus, marroquinos. Tudo ok na permanência deles, mas na miscigenação entre eles, como comprova o desejo de Halim de se casar com Zana, papel defendido com garbo de heroína trágica por Juliana Paes, uma das atrizes que mais amadureceram na TV neste país numa trajetória de 15 anos de cultura de massas. Zana é a força criadora, a Eva daquele Paraíso a ser conspurcado pela serpente da inveja e do recalque.

Em estado de graça, Antonio Calloni ajuda Juliana Paes a alcançar uma de suas mais maduras atuações na telinha  Foto: Estadão

Pontuada por frases quase filosóficas sobre a fala por vezes gaga do Tempo (outro muso de Carvalho), a versão de Maria Camargo para o romance de Hatoum deixa transbordante para o olhar quase teológico do aclamado diretor uma dimensão bíblica de fraternidade em fúria, cindida na ponta da faca do ressentimento. O que falta de Moral castradora no livro sobra neste capítulo, não por uma repaginação do universo de Hatoum mas por uma inteligente opção de se jogar uma lupa sobre o mais rejeitado dos personagens. Halim é o esteio daquele lar em coma, que vai agonizar até os anos 1980, sobretudo durante a ditadura. Por isso, Maria e Carvalho nos deixaram claro de onde tudo vem, de quem é a costela de onde brota o devir fêmea daquela Babel florestal. Zana é a peste negra que vai jogar irmão contra irmão. Pelo menos isso, na forma de uma proteção excessiva da própria cria, é o que o capítulo um sugere ao nos levar por uma viagem cinematográfica por imagens de arquivo raras de Manaus nos anos 1920.

Para a abertura, vimos uma estrutura de Velho Testamento bem parecida com a que Carvalho fez em Lavoura Arcaica. Mas houve uma quebra, para o riso, na presença do afetado casal Estelita e Abelardo, vividos por um Emílio Orciollo Netto com o espírito (e a graça) do grande palhaço italiano Totò e por uma Maria Fernanda Cândido deliciosamente divertida, nos moldes da Dercy Gonçalves das chanchadas. Eles são a parte bufa, cômica de um projeto de Brasil diferente do que a TV costuma retratar. Mas é um Brasil real. É difícil o realismo sobreviver ao barroco de Carvalho, mas o texto de Maria venceu esse duelo e respingou realismo - quase psicológico, na parte do jovem Halim - num saturado balé de contrastes. Resta sabermos a partir de agora quem são os gêmeos que o Adão do Islã pariu e o quanto eles vão levar Cauã a um outro patamar cênico em seu amadurecimento como ator. Talvez venha dele a liquidez que falta àqueles homens adestrados pelos desígnios do absoluto, do Absolutismo, do coronelismo velado. Talvez ele seja o Bauman de Manaus. É preciso conferir. A viagem será boa...

 

Antonio Fagundes é Halim, o Adão que pariu o Caim e o Abel vividos por Cauã Reymond na Manaus de Milton Hatoum  Foto: Estadão

RODRIGO FONSECASoa quase profético o fato de a estreia da minissérie Dois Irmãos - espécie de versão amazônica da parábola de Caim e Abel - coincidir com o dia da morte de Zygmunt Bauman, teórico da efemeridade segundo o qual "para ser feliz há dois valores essenciais que são absolutamente indispensáveis: um é segurança e o outro é liberdade, pois você não consegue ser feliz e ter uma vida digna na ausência de um deles, uma vez que segurança sem liberdade é escravidão, e que a liberdade sem segurança é um completo caos". "Liberdade" e "segurança" são traduzidos às avessas na obra literária de Milton Hatoum, de onde vem a nova experimentação narrativa do diretor Luiz Fernando Carvalho com o magma do melodrama: nas páginas do romance (homônimo à produção da TV Globo em dez capítulos), essas palavras que guiam o fenômeno humano são substituídas por "incompletude" e "incerterza". No texto de Hatoum não existe uma moral plena, tudo era líquido como as águas do Rio Negro ou como os amores de Bauman. Mas o episódio um da novíssima criação do realizador de Velho Chico troca essa liquidez por algo de sólido - talvez fosse melhor chamar de Moderno - ou até de perpétuo (tema central da TVgrafia de Carvalho), na opção por centrar o abre-alas do produto no patriarca, um Adão caído... no caso, Adão mascate, Adão de um Líbano muçulmano, dos Antigos, mas eterno. Halim é a gênese, o nesis de uma nova e provocante representação de Brasil.

Amparado por uma montagem helicoidal, que corre em torno de si mesmo, fazendo-se clara pela sensorialidade e pelas idas e vindas a um velho num rio (Antonio Fagundes, numa condição quase salomônica), Dois Irmãos abriu sua trajetória pela televisão pelo heroísmo romântico do futuro pai dos protagonistas (a serem vividos por Matheus Abreu e Cauã Reymond): o vendedor ambulante Halim. Três atores debruçaram-se sobre ele no capítulo 1, exibido na segunda: Fagundes, o ótimo Bruno Anacleto e um Antonio Calloni no mais absoluto estado de graça, capaz de dragar cada segundo da minissérie para si). Ficou a (boa) sensação de que estávamos sendo apresentados ao primeiro cidadão de um Éden fluvial, ao Adão daquele mundo arcaico nas convenções morais e na segregação não a diferenças individuais, mas a união delas, afinal de contas, lá convivem libaneses, judeus, marroquinos. Tudo ok na permanência deles, mas na miscigenação entre eles, como comprova o desejo de Halim de se casar com Zana, papel defendido com garbo de heroína trágica por Juliana Paes, uma das atrizes que mais amadureceram na TV neste país numa trajetória de 15 anos de cultura de massas. Zana é a força criadora, a Eva daquele Paraíso a ser conspurcado pela serpente da inveja e do recalque.

Em estado de graça, Antonio Calloni ajuda Juliana Paes a alcançar uma de suas mais maduras atuações na telinha  Foto: Estadão

Pontuada por frases quase filosóficas sobre a fala por vezes gaga do Tempo (outro muso de Carvalho), a versão de Maria Camargo para o romance de Hatoum deixa transbordante para o olhar quase teológico do aclamado diretor uma dimensão bíblica de fraternidade em fúria, cindida na ponta da faca do ressentimento. O que falta de Moral castradora no livro sobra neste capítulo, não por uma repaginação do universo de Hatoum mas por uma inteligente opção de se jogar uma lupa sobre o mais rejeitado dos personagens. Halim é o esteio daquele lar em coma, que vai agonizar até os anos 1980, sobretudo durante a ditadura. Por isso, Maria e Carvalho nos deixaram claro de onde tudo vem, de quem é a costela de onde brota o devir fêmea daquela Babel florestal. Zana é a peste negra que vai jogar irmão contra irmão. Pelo menos isso, na forma de uma proteção excessiva da própria cria, é o que o capítulo um sugere ao nos levar por uma viagem cinematográfica por imagens de arquivo raras de Manaus nos anos 1920.

Para a abertura, vimos uma estrutura de Velho Testamento bem parecida com a que Carvalho fez em Lavoura Arcaica. Mas houve uma quebra, para o riso, na presença do afetado casal Estelita e Abelardo, vividos por um Emílio Orciollo Netto com o espírito (e a graça) do grande palhaço italiano Totò e por uma Maria Fernanda Cândido deliciosamente divertida, nos moldes da Dercy Gonçalves das chanchadas. Eles são a parte bufa, cômica de um projeto de Brasil diferente do que a TV costuma retratar. Mas é um Brasil real. É difícil o realismo sobreviver ao barroco de Carvalho, mas o texto de Maria venceu esse duelo e respingou realismo - quase psicológico, na parte do jovem Halim - num saturado balé de contrastes. Resta sabermos a partir de agora quem são os gêmeos que o Adão do Islã pariu e o quanto eles vão levar Cauã a um outro patamar cênico em seu amadurecimento como ator. Talvez venha dele a liquidez que falta àqueles homens adestrados pelos desígnios do absoluto, do Absolutismo, do coronelismo velado. Talvez ele seja o Bauman de Manaus. É preciso conferir. A viagem será boa...

 

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