‘De Canção em Canção’ põe divindade no Ser Humano
Rodrigo Fonseca
RODRIGO FONSECA
No trecho mais tocante do experimento sensorial chamado De Canção em Canção, o novo filme de Terrence Frederick Malick, previsto para estrear no Brasil nesta quinta, a fim de promover uma hemodiálise visual em nossas retinas, dois amigos unidos pela música – Ryan Gosling e Michael Fassbender – saltam como símios, entre caras e bocas animalizadas, a brincar um com o outro como crianças. Eles dialogam muita coisa um com o outro, às vezes no amor, às vezes no ódio. Mas não se preocupe com as falas, pois Malick vai cortá-las, ignorando solenemente o que eles falam em prol de um texto em off, que calça Song to Song (título original) como uma grande tapeçaria emotivas, que serve de chão (e também de bússola) a uma das mais virulentas (e vivas) narrativas do cineasta. Virulenta por ser telúrica, menos espiritualizada do que em seus longas mais recentes, carregada de órgãos, de impurezas. É um Malick mais gente e menos alma, sempre metafísico, porém menos messiânico, numa evolução de cunho antropocêntrico de si mesmo, apoiado em um elenco em timbres de esplendor.
Há uma reflexão recente sobre o cineasta, que antecedeu a exibição do doído De Canção em Canção no Festival SXSW, em Austin no Texas (onde a trama se passa), em março, publicada no livro Terrence Malick – Rehearsing the Unexpected (Ed. Faber & Faber), na qual os organizadores Daniele Villa e Carlo Hintermann apontam uma gradual mutação no olhar dele a partir de O Cavaleiro de Copas (2015). Segundo eles, o “obsessivo interesse de Malick pela família e pelas relações de confiança afasta seu cinema do Mistério”. O “Mistério” se refere à dimensão cósmica quase teológica de seus filmes dos anos 2010, alimentada, em parte, pelo folclore em torno da postura reclusa, reticente a holofotes, dele. Postura que caiu por terra este ano, quando ele apareceu na abertura do SXSW, para promover seu novo e belo longa-metragem.
Rooney Mara e Ryan Gosling integram um dos triângulos amorosos desta experiência sensorial de Terrence Malick
Dessa opção dita “carola” do cineasta nasceu um desdém em relação a Malick, que atropelou seu belíssimo filme seguinte: Amor Pleno (2012), com Ben Affleck. O que deve ficar claro é a dimensão filosófica por baixo desse perfil clerical atribuído ao cineasta, que aprendeu com Stevens a desenhar planos contemplativos do ambiente à sua volta. Para Stevens, a câmera precisa passear, pois, só assim, ela pode revelar o quanto as forças da natureza (tipo o petróleo a jorrar em Assim Caminha a Humanidade) é maior do que os seres humanos que a povoam.
Dele, Malick herdou o instinto de fazer com que a câmera trafegue pelo Espaço alheia às demandas do tempo capitalista, devota ao Tempo mítico, onisciente e onipotente, a fim de poder flagrar nos mais simples gestos humanos a expressão dos impasses afetivos mais inauditos. É o que acontece em De Canção em Canção, no choque entre as formas de amar entre seus personagens e na sensação de decepção entre os amigos vividos por Gosling e Fassbender.E nesse filme, o ideal transcendental – que Malick aprendeu lendo Ralph Waldo Emerson e Henry David Thoreau – escorre pelos planos do doído De Canção em Canção a partir da sensação de vazio que emparelha seus protagonistas num quadrilátero de desencaixes e desconexões. É um filme a ser fruído pela força da beleza que nos cerca – a mesma que conspurcamos como nossas mesquinharias. Existe em Malick uma dramaturgia em tom de homilia diferente de tudo o que vimos e vemos. É dura de ser fruída, exige disciplina e pensamento, mas deixa como saldo uma revisão crítica de nossas lacunas existenciais mais profundas. E não há ninguém fazendo o que ele faz.
COTAÇÃO: Excelente
RODRIGO FONSECA
No trecho mais tocante do experimento sensorial chamado De Canção em Canção, o novo filme de Terrence Frederick Malick, previsto para estrear no Brasil nesta quinta, a fim de promover uma hemodiálise visual em nossas retinas, dois amigos unidos pela música – Ryan Gosling e Michael Fassbender – saltam como símios, entre caras e bocas animalizadas, a brincar um com o outro como crianças. Eles dialogam muita coisa um com o outro, às vezes no amor, às vezes no ódio. Mas não se preocupe com as falas, pois Malick vai cortá-las, ignorando solenemente o que eles falam em prol de um texto em off, que calça Song to Song (título original) como uma grande tapeçaria emotivas, que serve de chão (e também de bússola) a uma das mais virulentas (e vivas) narrativas do cineasta. Virulenta por ser telúrica, menos espiritualizada do que em seus longas mais recentes, carregada de órgãos, de impurezas. É um Malick mais gente e menos alma, sempre metafísico, porém menos messiânico, numa evolução de cunho antropocêntrico de si mesmo, apoiado em um elenco em timbres de esplendor.
Há uma reflexão recente sobre o cineasta, que antecedeu a exibição do doído De Canção em Canção no Festival SXSW, em Austin no Texas (onde a trama se passa), em março, publicada no livro Terrence Malick – Rehearsing the Unexpected (Ed. Faber & Faber), na qual os organizadores Daniele Villa e Carlo Hintermann apontam uma gradual mutação no olhar dele a partir de O Cavaleiro de Copas (2015). Segundo eles, o “obsessivo interesse de Malick pela família e pelas relações de confiança afasta seu cinema do Mistério”. O “Mistério” se refere à dimensão cósmica quase teológica de seus filmes dos anos 2010, alimentada, em parte, pelo folclore em torno da postura reclusa, reticente a holofotes, dele. Postura que caiu por terra este ano, quando ele apareceu na abertura do SXSW, para promover seu novo e belo longa-metragem.
Rooney Mara e Ryan Gosling integram um dos triângulos amorosos desta experiência sensorial de Terrence Malick
Dessa opção dita “carola” do cineasta nasceu um desdém em relação a Malick, que atropelou seu belíssimo filme seguinte: Amor Pleno (2012), com Ben Affleck. O que deve ficar claro é a dimensão filosófica por baixo desse perfil clerical atribuído ao cineasta, que aprendeu com Stevens a desenhar planos contemplativos do ambiente à sua volta. Para Stevens, a câmera precisa passear, pois, só assim, ela pode revelar o quanto as forças da natureza (tipo o petróleo a jorrar em Assim Caminha a Humanidade) é maior do que os seres humanos que a povoam.
Dele, Malick herdou o instinto de fazer com que a câmera trafegue pelo Espaço alheia às demandas do tempo capitalista, devota ao Tempo mítico, onisciente e onipotente, a fim de poder flagrar nos mais simples gestos humanos a expressão dos impasses afetivos mais inauditos. É o que acontece em De Canção em Canção, no choque entre as formas de amar entre seus personagens e na sensação de decepção entre os amigos vividos por Gosling e Fassbender.E nesse filme, o ideal transcendental – que Malick aprendeu lendo Ralph Waldo Emerson e Henry David Thoreau – escorre pelos planos do doído De Canção em Canção a partir da sensação de vazio que emparelha seus protagonistas num quadrilátero de desencaixes e desconexões. É um filme a ser fruído pela força da beleza que nos cerca – a mesma que conspurcamos como nossas mesquinharias. Existe em Malick uma dramaturgia em tom de homilia diferente de tudo o que vimos e vemos. É dura de ser fruída, exige disciplina e pensamento, mas deixa como saldo uma revisão crítica de nossas lacunas existenciais mais profundas. E não há ninguém fazendo o que ele faz.
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