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De antena ligada nas HQs, cinema-pipoca, RPG e afins

Daltonismo étnico e ético sob a lupa de Bouchareb

Por Rodrigo Fonseca
Atualização:
Brenda Blethyn vive a agente de condicional do ex-presidiário encarnado por Whitaker Foto: Estadão

Já se vão um ano e nove meses desde a primeira exibição pública de Dois Homens e uma Cidade, de Rachid Bouchareb, ocorrida no Festival de Berlim de 2014, mas o tempo de espera por uma vaga no circuito nacional não imprimiu rugas na tez de um dos filmes mais possantes do cineasta franco-argelino - e um dos mais contundentes do ano no país. Numa poeirenta locação em Albuquerque, no Novo México, o diretor de 62 anos - promovido à aristocracia do cinema autoral afro-europeu com o êxito de Dias de Glória em Cannes em 2006 - recriou um cult B francês da década de 1970: Deux Hommes Dans La Ville, de José Giovanni. O original (cujo trailer você confere mais ao pé deste papo) tinha Alain Delon em conflito com Jean Gabin. Aqui é Harvey Keitel quem acossa Whitaker, tendo este o alento de duas grandes atrizes. De um lado Ellen Burstyn, já octogenária; do outro, uma Brenda Blethyn machona, brigona, mas uterina, coroando uma parceria com Bouchareb que já vem de London River: Destinos Cruzados (2009). Éric Neveux assina a trilha que embala esse elenco em colisão.

 

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Do original de Giovanni, Bouchareb tirou uma premissa para delinear seu bíceps de autor, pois seu tema é sempre o mesmo: o daltonismo étnico (e ético) que alimenta a intolerância cultural, segregando tons de pele, tribos e, neste caso, passados. Saído do xilindró após 18 anos, Garnett (Whitaker) cumpriu todas as suas dívidas com o Estado e nem todas com sua culpa, mas converteu-se ao Islã para diluir o peso na consciência por ter assassinado um tira quando era traficante, a serviço do chefão mexicano das drogas, Terence (papel do porto-riquenho Luis Guzmán, sempre um primor de ator). Em Alá, Garnett encontrou mais do que um analgésico para a dor dos erros pretéritos: Nele, pode provar do sabor mentolado da Paz e focar na redenção. Mas recomeçar é um verbo conjugado na desinência do sangue na fronteira EUA/México (se duvida, dá uma espiada no genial Sicário: Terra de Ningém, de Denis Villeneuve, para aprender mais). E o sangue é derramado com mais crueldade quando se está num perímetro desse Tratado de Tordesilhas norte-americano cuja Lei é regida pelo xerife Bill Agati, um personagem capaz de tirar da alma de Harvey Keitel um bicho tão ruim que dá medo. E Agati tem como missão na Terra manter Garnett atrás das grades, pois foi um de seus policiais que o ex-criminoso matou.

Harvey Keitel (no centro) gargareja maldade como o xerife Agati, o homem da Lei na fronteira dos EUA com o México Foto: Estadão

É nesse cenário, guiado pelo ressentimento, que Bouchareb constrói um ensaio sobre os vocábulos "tolerar" e "perdoar", caminhando da brutalidade inerente à Legislação de Talião (onde um olho vale um olho; um dente vale um dente) à desesperança. São trilhas que Bouchareb aprendeu a conhecer conforme amadureceu, ao lançar Fora da Lei em 2010. Teve, de lá para cá, tempo de realizar uma série de 50 episódios, Frères d'Armes, e ainda tem um longa novo para tirar do forno em Cannes no ano que vem: o thriller Las Route Des Lacs. Mas a cada novo passo, sua couraça narrativa - em franco endurecimento - vai se fechando cada vez mais para a crença na sublimação das deselegâncias nossas de cada dia. É que a deselegância, no caso dele, escreve-se (ou filma-se) com litros de melanina e especiarias islâmicas. E, no cozido que ele prepara, elas amargam. Mas abrem nossos olhos. Ou, no mínimo, alertam para a miopia. Dois Homens Contra uma Cidade é um filme único - com ação que sobe as taxas de adrenalina, com drama que absorve o peito e com Whitaker em estado de graça. Vai ver logo.

Eis o trailer da versão 73 de Dois Homens... com trilha de Philippe Sarde para empapuçar os tímpanos.

 

 

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