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Corisco rodopia em 4K em Cannes

Por Rodrigo Fonseca
Atualização:
Othon Bastos levou Brecht para a gênese do cangaceiro Corisco, que troca ideias com o vaqueiro Manuel (Geraldo Del Rey) em "Deus e o Diabo na Terra do Sol", que concorreu à Palma de Ouro, em 1964 Foto: Estadão

Rodrigo Fonseca Fiel à tese sociológica de que "mais forte são os poderes do povo", Corisco, o Diabo Louro, um cangaceiro responsável por popularizar o rosto do baiano Othon Bastos nas telas do mundo, é esperado pelo 75º Festival de Cannes nesta quarta-feira. É o dia em que o evento vai projetar a cópia restaurada em 4k de "Deus e o Diabo na Terra do Sol", 58 anos depois de sua passagem pela disputa à Palma de Ouro. Foi em 1964, no momento em que o Brasil sofreu o golpe militar que lhe deflagrou uma ditadura de 21 anos. Memórias dos anos de chumbo e da resistência de seu realizador, Glauber Rocha (1939-1981), à intolerância de farda, passam pela cabeça de sua filha primogênita, a diretora e produtora Paloma Rocha, que cuida da obra do cineasta. Em 2019, o produtor Lino Meireles (diretor do aclamado "Candango: Memórias do Festival") uniu-se a ela para restaurar o segundo longa-metragem de égide glauberiana, realizado após "Barravento", de 1961. "Num país com a cultura tão depreciada, com a produção artística sofrendo ataques, fizemos um esforço de ir contracorrente. Isso só é possível porque o filme tem a força própria dele", explicou Paloma em recente entrevista. E Lino atesta sua fala, no release de divulgação do restauro: "É um ciclo completo para a nossa restauração, onde o filme será reexibido pela primeira vez no mesmo local em que estreou. Que seja um novo chamado de resistência cultural", afirma o diretor.

Como Corisco voltará a ser badalado, Othon deve voltar aos holofotes. Em entrevistas recentes ao P de Pop, ele falou sobre o personagem, que é caçado por Antônio das Mortes, o Matador de Cangaceiros encarnado por Maurício do Valle (1928-1994). Em sua passagem pelo 16º Fest Aruanda, na Paraíba, em dezembro, Othon cravou: "O que me assusta é o esquecimento. É você ser esquecido. A posteridade não me interessa, só me interessa viver. Quero viver e trabalhar. A posteridade a gente deixa para o Google", disse.

 Foto: Estadão

Falando sobre Glauber, o ator fez um balanço geracional: "No cinema, existe a possibilidade de se dizer coisas que até podem ser proibidas ou censuradas, mas o veto demora mais tempo do que, por exemplo, no teatro. Demora o processo de edição, demora a finalização dos copiões. Nisso, as mensagens vivem, repercutem. A gente fez uma mensagem de resistência repercutir lá em 1964. Cada época tem um significado político, ético... desde que você esteja inteiro em cada papel. E eu sempre estou. Por isso, até hoje, eu tenho medo. O medo é parte da responsabilidade de atuar, apesar de toda a sua experiência, porque atuar é uma corrida de revezamento: você precisa dar o melhor de si. O que a gente fazia com a turma do Cinema Novo era lutar para revelar as coisas. Leon Hirszman era um homem político que me ensinou a grandeza de se seguir em frente. O Glauber me deu a chance de experimentar Brecht no cinema. Naquela época, em 1968, eu fiz 'Capitu', baseado em Machado de Assis, com o Paulo Cézar Saraceni, que me deu chance de explorar dimensões existenciais da condição humana, no auge daquele momento de tensão política. Aqueles artistas cultuavam a força da expressão livre. E pagaram o preço por isso: olha quanto tempo eles demoravam para filmar, com a dignidade necessária para expressar suas ideias", explica Othon, que levou conceitos teatrais do distanciamento brechtiano na criação de Corisco, como lembrou em entrevista ao JB, em 2018. "Quem é que ainda se lembra de Brecht hoje, neste momento em que se vive, no Brasil, um total desprezo pela cultura? Eu sou de uma época em que um ator de teatro fazia nove apresentações de um espetáculo por semana. Hoje, se uma peça fica sexta, sábado e domingo em cartaz, já é muito. Nossa memória está sendo incendiada. Mas, ainda resistimos".Cannes começa nesta terça, com a projeção de "Coupez!", de Michel Hazanavicius, e termina no dia 28 de maio.

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