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'Borrasca': Mário Bortolotto na boca cariada do luto

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Por Rodrigo Fonseca
Atualização:

Rodrigo Fonseca Tem um negócio bom pacas que o Mário Bortolotto escreveu no melhor livro de poemas que li em 2018 que reflete assim sobre os buracos que cultivamos ou cativamos: "Mais melancólico do que as luzes de um parque de diversões se apagando/ Maior que a noite/ O perdão que fica trancado/ debaixo do assoalho/ do coração devastado/ por cupins de sua condenação". Você acha essa joia aí em "O pior lugar que eu conheço é dentro da minha cabeça", editado pela Reformatório. Mas tem verborragia parecia (e de igual voltagem) no que ele vomita no filme "Borrasca", autópsia em corpo vivo da amizade, com todo o ônus e todo bônus de se imolar em amor fraterno a outrem. O longa-metragem é de Francisco Garcia, que colecionou elogio pelo mundo com o desencapado "Cores" (2013), e que volta aqui falando de carraspanas de dissoluções e da frente fria que a chuva traz (nome de uma peça de Mário, filmada em 2015 por Neville D'Almeida). O léxico desta nova incursão do audiovisual ao universo de raspas e restos do dramaturgo por trás de "Getsêmani" e "Nossa vida não vale um Chevorlet" é o do dente cariado, do bafo de conhaque, do arroto choco. A estrutura faz parecer teatro: locação única, unidade de tempo bem determinada, fala como ação. Cinematograficamente, tem lá seus contatos e contágios com o John Huston de "À sombra do vulcão" (1984) e guarda uma parentela com "Carreiras" (2005), de Domingos Oliveira. Tem timbre de peça, mas vai além da mecânica do teatro, graças a precisos componentes que Garcia escolheu para compor seu puzzle sobre o desmantelo afetivo ampliam: no caso, a direção de arte de Monica Palazzo e a fotografia de Alziro Barbosa. São estes os amálgamas sinestésicos que dão relevo à Fortaleza da Solidão de Bortolotto: a trama se passa num apartamento onde dois amigos que choram o luto de um companheiro de cachaça e falação. Remorso é o rosário que eles desfiam, com contas de um substantivo prostituto chamado saudade, que derrete na boca. A reza deles pelo bem do morto revela fraquezas, ternuras e (im)potências, numa homilia de perdas e danos. É um filme para ver correndo. E pra rever com responsabilidade.

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