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De antena ligada nas HQs, cinema-pipoca, RPG e afins

'Boca de Ouro', D. Corleone de Madureira, na TV

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Por Rodrigo Fonseca
Atualização:

RODRIGO FONSECA Escalado como o José Leôncio da nova (e deslumbrante) versão de "Pantanal", que arranca suspiros do Brasil, Marcos Palmeira vai encher a tela da Globo de sarcasmo nesta madrugada na melhor atuação de sua longa trajetória no cinema no papel principal de "Boca de Ouro", a versão que Daniel Filho lançou em 2019. Tem sessão dela às 3h30, no "Corujão". Lá atrás, em seu lançamento, um texto na revista portuguesa "C7nema", destacou que "há um riquíssimo torvelinho de modos de contação de história no corajoso resgate do personagem. É um filme que convida a uma revisita da História, pela trança singular que o diretor - apoiado na escrita fina do roteiro de Euclydes Marinho - promove do limiar entre o trágico e o folhetinesco". É um exercício de direção maduríssimo, perfumado de brasilidade. Signo de virilidade (hoje uma palavra proscrita), Boca de Ouro é nome do Don Corleone do bairro de Madureira, região do subúrbio do Rio de Janeiro famosa por ter cinema, teatro e um mercado público grandiosos até o fim dos anos 1990. O Mercadão ainda está lá, em riste, bombando neste sábado chuvoso no Rio. Mas as instâncias de arte - com exceção de um parque multicultural fundado em meados desta nossa década - agonizaram múltiplas vezes nas mãos do tráfico. Mas para quem vem da Zona Norte do RJ - e é o caso deste que vos tecla -, Madureira era a Gilbratar suburbana, a terra das maravilhas e de burgueses poderosos, capaz de conservar idílios de outros tempos. Foi lá que o dramaturgo mais aclamado do teatro brasileiro, Nelson Rodrigues (1912-1980), instalou seu Al Capone. Este surgiu em peça escrita em 1959, com estreia no Teatro Federação (mais tarde Teatro Cacilda Becker) no dia 13 de outubro de 1960, reeditando a parceria do autor com o ator e encenador polonês Zbigniew Ziembinski (1908-1978). Chamava a atenção, na carpintaria rodriguiana, ali, um multiperspectivismo muito próximo dos contos de Ryûnosuke Akutagawa (1892-1927), o autor japonês que inspirou "Rashomon" (1950), de Akira Kurosawa (1910-1998). Muito já foi falado acerca de uma semelhança de dispositivos entre o texto de Nelson e o filme de Kurosawa. Mas essa comparação (crítica muitas vezes) é pequena perto da grandeza do estudo de tipos feita por Nelson. Estudo esse amplificado de maneira nova por Daniel, cujo currículo tem êxitos como a franquia "Se Eu Fosse Você" (2005-2009) e "Chico Xavier" (2010). O que desabrocha a trama - como incidente incitante da jornada empreendida pelo jornalista Caveirinha para saber o que ocorre em Madureira - é a morte de Boca. Este é um chefão do jogo do bicho. Ele morre em misteriosas circunstâncias, transversais a seu romance com uma jovem fã de Grace Kelly, Celeste. Boca faz jus ao nome: suas mandíbulas são feitas de uma liga dourada caríssima, ostentando a riqueza que adquiriu na vida do crime. Faz também jus à fama de mau, executando seus adversários na crueldade. Daí a surpresa com sua morte: ninguém entende como um bicho solto daqueles morre bestialmente, do nada. É uma surpresa que ganhou mais força, para além do teatro, quando Nelson Pereira dos Santos (1928-2018) filmou o texto de Nelson, transformando-o em um dos pilares do Cinema Novo, a partir de um inventário das cicatrizes suburbanas, sob o cutelo da exclusão. Aliás, a versão dele está na grade da Amazon Prime. Nela, havia um poço de carisma, consagrado nas telas com "Os Cafajestes" (1962): Jece Valadão (1930-2006). Jece deu vida ao contraventor nessa adaptação tão consagrada. Nos anos 1990, foi a vez de Tarcísio Meira (1935-2021), o João Coragem das telenovelas, viver o criminoso em adaptação de Walter Avancini (1935-2001), produzida pelo filho de Nelson, Joffre Rodrigues (1941-2010). Em ambas as releituras, imperava o tom trágico e um certo determinismo sociológico: Boca era um Brasil que deu errado, por inadimplências do Estado. Embora não negue isso, Daniel Filho, preservando toda a essência da pena rodriguiana, pega um atalho pela bifurcação entre o drama e a tragédia, que desemboca no melodrama, seu lugar de (investig)ação por excelência.

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Amparado num sofisticadíssimo trabalho de direção de arte de Kaká e Mário Monteiro, capaz de criar uma Madureira parecida com a Chicago de Brian De Palma em "Os Intocáveis" (1987), Daniel Filho preserva a medula óssea de Nelson, mas a carnaliza com novos músculos, que são torneados no supino do feminino. Apesar da exuberância da atuação de Palmeira e dos traços soturnos, cheios de chiaroscuro, que Silvio Guindane dá à figura do repórter Caveirinha, este novo "Boca de Ouro" parece se interessar mais pelas mulheres que rodeiam o protagonista, dando a elas uma tridimensionalidade notável. E a fotografia dionisíaca de Felipe Reinheimer gravita entre o PB e a cor, brincando com a sensorialidade. Merece aplausos a composição que Daniel arranca da atriz(aça) Malu Mader, no papel de Gui Gui. É algo de desmistificador (e de avassalador). Sua persona de heroína dá lugar a uma Anna Magnani de periferia, vivendo a ex-amante de Boca neste "Rio, Cidade aberta". Malu está radiante em cena. Sua Gui Gui é quem primeiro levanta a conexão de Boca com a jovem Celestre, encarnada corajosamente por Lorena Comparato. Igualmente notável é o desempenho da atriz Fernanda Vasconcellos como a rica Maria Luisa. Vale madrugar e conferir.

p.s.: Segunda-feira tem "Escobar: A Traição" (2017), com Javier Bardem e Penélope Cruz, na "Tela Quente", às 23h55.

p.s.2: Neste domingo, às 22h, tem "Nise - O Coração da Loucura" (2015), de Roberto Berliner, na TV Brasil, com Glória Pires no apogeu. O filme ganhou o a láurea de Júri Popular no Festival do Rio e venceu o Prêmio de Melhor Filme no Festival de Tóquio.

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