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'Beckett': Godot cheio de som e fúria em Locarno

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Por Rodrigo Fonseca
Atualização:
John David Washington, astro de "Tenet", protagoniza "Beckett": uma aula de tensão Foto: Estadão

Rodrigo Fonseca Esperando um Godot político, em meio a uma Atenas inflamada de protestos, enquanto é caçado pela polícia, o personagem-título do elétrico "Beckett", um turista em férias vivido por John David Washington, inaugura hoje a 74ª edição do Festival de Locarno, na Suíça, celebrando a força do cinema de gênero, levando à Europa um quê de brasilidade. Pavimentado de adrenalina ao longo de seus 108 minutos de tensão, o thriller dirigido pelo italiano Ferdinando Cito Filomarino é produzido por Rodrigo Teixeira e sua RT Features, que abre uma maratona cinematográfica onde o Brasil sempre teve destaque. Integrante do G7 dos grandes festivais (ao lado de Cannes, Veneza, Berlim, Roterdã, Toronto e San Sebastián), Locarno já abriu suas portas para Julio Bressane mais de uma vez. Foi de lá que saiu o primeiro grande prêmio internacional de "Pixote - A Lei do Mais Fraco" - o Leopardo de Prata, em 1981. Três anos depois foi a vez de Murilo Salles sair de terras suíças com o Leopardo de Bronze por "Nunca Fomos Tão Felizes" (1984). Já nos anos 2010, várias produções nacionais foram laureadas naquela cidade, como "Luz Nas Trevas" (2010), de Helena Ignez; "As Boas Maneiras", de Juliana Rojas e Marco Dutra; "Era Uma Vez Brasília", de Adirley Queirós; e "A Febre", de Maya Da-Rin. Agora é a vez de Teixeira, que saiu de Cannes, no dia 17, com o troféu Cámera d'Or, dado a seu "Murina", dirigido por Antoneta Alamat Kusijanovic, e volta às mostras tamanho GG do Velho MUndo com esse suspense hitchcockiano que estreia dia 13 na Netflix. "É super importante abrir o Festival de Locarno, sobretudo com um filme de que a gente gosta bastante na RT, sendo um projeto que a gente apoiou desde o princípio", diz Teixeira, um dos primeiros artistas que se manifestaram nas redes sociais, na última quinta-feira, a expressar horror contra o incêndio na Cinemateca Brasileira - à qual o festival suíço já demonstrou seu apoio público. "Foi o Luca Gudagnino (diretor de "Me Chame Pelo Seu Nome" e um dos produtores de "Beckett") que nos chamou para fazer parte desse filme do Ferdinando Cito Filomarino. John David Washington está muito bem no papel". No papo com o Estadão, Teixeira usa a expressão "um filme diferente, comercial" para definir "Beckett", traduzindo em adjetivos uma narrativa que não se abraça a radicalismos, como "O Farol" (que rendeu à RT o Prêmio da Crítica, em Cannes, em 2019), nem renova cartilhas, como "A Bruxa" (com o qual a produtora tomou Sundance de assalto, em 2015). O que Filomarino dá a Locarno é uma aula de tensão, fiel a convenções que Hitchcock testou e o público aprovou. Uma aula que se alinha com o espírito de revisão de fórmulas perseguido por Giona A. Nazzaro, o recém-empossado diretor artístico do evento suíço. "Curadorias são atividades que investem na surpresa. Eu escolho o que me surpreende", disse Giona ao Estadão, ao assumir o posto, em novembro de 2020.

 Foto: Estadão

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Aos 56 anos, o crítico e curador nascido em Zurique é um expert no cinema de ação asiático, tendo escrito livros sobre John Woo (diretor de "Fervura Máxima" e "A Outra Face"). Publicou ainda o obrigatório "Il Dizionario Dei Film Di Hong Kong". Até o dia 14, Locarno vai conferir o quão provocativo é o crivo dele para escolher longas e curtas-metragens. Nesse terreno, o dos pequenos grandes filmes, o Brasil tem lá dois títulos, na mostra Pardi di Domani: "Fantasma Neon", de Leonardo Martinelli, e "A Máquina Infernal", de Francis Vogner dos Reis, o curador da Mostra de Tiradentes. "Meu interesse por filmes de gênero não se limita aos códigos que eles têm, pois isso seria uma redução. O que me interessa é conhecer e entender as vozes autorais que se formaram no exercício desses códigos, revelando diretores de muita potência", diz Giona, que levou um longa com a grife da Netflix para abertura de um dos mais antigos e prestigiados festivais europeus, ao contrário, por exemplo, do que Cannes faz, ignorando a plataforma. "Ver um filme no cinema é uma experiência física que será sempre um diferencial. O que temos visto recentemente, em especial ao longo da pandemia, é que manifestos artísticos antes idealizados para o cinema, migraram para o streaming, mas não por antipatia ou adversidade às salas exibidoras, e, sim, como uma estratégia de sobrevivência possível".

Ethan Hawke estrela "Zeros and Ones", que pode dar o Leopardo de Ouro a Abel Ferrara  

Sintonizado com a tragédia econômica da Grécia no fim dos anos 2000, "Beckett", cuja trama se ambienta durante a administração Barack Obama (2009-2017), corresponde ao interesse de Giona por filmes de gênero que revelem autoralidades. Filomarino chamou a atenção da crítica em 2015, com "Antonia.", sobre a poeta Antonia Pozi (1912-1938), no qual se apropriava das regras narrativas do drama. Parte delas, em seu novo filme, integram a saga do americano Beckett, vivido por um John David Washington tão tenso quanto esteve em "Tenet". Ele passa férias românticas com a namorada, April (Alicia Vikander), em solo grego até que um desastre de carro encerra seu passeio. No local do acidente, ele vê um jovem rapaz, a quem pede ajuda, sem ser atendido. Aquela lembrança fica em sua cabeça e ele volta ao território onde o carro capotou. Nesse retorno, ele passa a ser perseguido, sem qualquer explicação, por figuras supostamente ligadas à lei. Em busca de sua sobrevivência, tromba com um misterioso agente da Embaixada dos EUA, vivido por Boyd Holbrook (de "Narcos"), e com uma ativista, Lena, papel de Vicky Krieps (de "Trama Fantasma"). "Daqui para o futuro, precisamos pensar diferente e integrar modelos de produção, a fim de proteger o cinema", diz Giona, que escalou um longa inédito de Abel Ferrara - também um thriller, chamado "Zeros and Ones", e protagonizado por Ethan Hawke - para concorrer ao Leopardo de Ouro de 2021. Em sua disputa por prêmios, Locarno tem sci-fi sobre UFOs (o espanhol "Espíritu sagrado"), comédia policial contra homofobia ("Cop Secret", da Islândia) e até fantasia, que é o caso do esperadíssimo "Paradis sale", de Bertrand Mandico, diretor francês que virou queridinho da revista "Cahiers du Cinéma" com "Os Garotos Selvagens" (2017). Há já uma torcida se formando em torno de "La Place D'Une Autre", de Aurélia Georges, hoje uma das promessas francesas na direção. E há dolorosos estudos sobre a desagregação familiar: "Petite Solange", da cineasta Axelle Ropert, também da França.

Cada concorrente há de passar pelas deliberações do júri presidido pela diretora americana Eliza Hittman (de "Nunca, Raramente, Às Vezes, Sempre"), incluindo os cineastas Kevin Jerome Everson (EUA) e Philippe Lacôte (Costa do Marfim) e as atrizes Leonor Silveira (Portugal) e Isabella Ferrari. O júri dos curtas é composto pelo diretor palestino Kamal Aljafari, a produtora francesa Marie-Pierre Macia e a artista plástica e cineasta romena Adina Pintilie. Fora das seções competitivas, a Piazza Grande, a praça principal de Locarno, acolhe estreias de potenciais sucessos populares como "Free Guy", com Ryan Reynolds (o Deadpool) num mundo de videogame; o thriller criminal "Ida Red", de John Swab, com Melissa Leo controlando uma organização criminosa do interior de uma prisão. Na seção das retrospectivas, Locarno relembra a obra do diretor Alberto Lattuada (1914-2005), que saiu premiado de Veneza, em 1947, por "Delito", a assinou "Mulheres e Luzes" (1950), ao lado de Fellini. Na lista de homenagens, o festival nº 1 da Suíça vai conceder honrarias à atriz franco-italiana Laetitia Casta; à produtora americana Gale Anne Hurd; ao fotógrafo italiano Dante Spinotti; à atriz ítalo-polonesa Kasia Smutniak; ao animador Japonês Mamoru Hosoda; e um dos faróis da Hollywood dos anos 1980, John Landis, diretor de "Um Lobisomem Americano Em Londres" (1981), que será presenteado com o Pardo d'Onore. Locarno termina no dia 14, com a exibição de "Respect", da diretora Liesl Tommy, no qual (uma inspiradíssima) Jennifer Hudson vive a cantora Aretha Franklin, tendo Marlon Wayans no elenco.

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