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Assim caminha 'Velho Chico': do lúdico à perplexidade, sem perder a poesia

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Por Rodrigo Fonseca
Atualização:
Irandhir Santos: a bênção do real Foto: Estadão

Espécie de Assim Caminha a Humanidade versão nordestina, com um tônus épico similar ao sexagenário longa-metragem de George Stevens, a telenovela Velho Chico conseguiu, na transição de fases históricas, caminhando dos anos 1960 para nossos tempos, um equilíbrio - de tensão e encantamento crescentes - entre os diferentes gêneros e registros narrativos a partir dos quais foi moldado pelo diretor Luiz Fernando Carvalho. No seu DNA foram somados elementos de faroeste, melodrama, romance e até documentário (numa observação quase etnográfica de rituais e questões fundiárias), todos sempre exponenciados a um radical de brasilidade capaz de elevar arquétipos e enredos universais a uma dimensão de espelhamento dos contratempos mais profundos desta nossa sociedade. Tudo isso ficou de um hemisfério cronológico ao outro, mudando apenas o teor de lirismo: saiu o lúdico e ficou a perplexidade do real, sem que com isso fosse sacrificado a natureza poética do universo de Benedito Ruy Barbosa, com um texto desenvolvido por sua filha Edmara Barbosa e seu neto Bruno Luperi. E tal qual o filme lançado por Stevens em 1956 era capaz de usar o jorro do petróleo como uma espécie de código simbólico para esmiuçar a evolução de seus personagens, aqui - sob uma direção cada vez mais talhada para esgarçar as fronteiras do folhetim clássico - o rio é a metáfora para o desenvolvimento de vidas acossadas pelo coronelismo e outras modalidades da mais-valia camponesa. Antes o Afrânio de Rodrigo Santoro (numa atuação antológica) era o leito de onde fluía toda a energia dramática. Agora, contam mais os afluentes de Afrânio, sejam direta ou indiretamente ligados ao latifundiário.

Química perfeita entre Camila Pitanga e Marcelo Serrado: abnegação romântica à beira do Rio da Integração Nacional Foto: Estadão

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No tomo inicial, Carvalho recorta no texto dos autores uma estrutura de legado similar a de O Poderoso Chefão (1972), de Francis Ford Coppola. Afrânio-Santoro tem a mesma maldição de Michael Corleone-Pacino: este se vê obrigado a herdar do pai Don Vito um império da roça e seus deveres. O mesmo acontece na novela quando Jacinto (Tarcísio Meira) parte para o Além, deixando seu reinado para o filho. Michael sonhava ganhar o mundo como militar, assim como Afrânio se deleitava dos prazeres do mundo do desbunde político, na toada da Tropicália e dos porres para embriagar a lucidez. Na perda de Jacinto, ele se aquieta nos desígnios de senhor feudal e aprende outra forma de fazer o mundo girar, gostando, de alguma forma, desse poder de mandar fazer. Na velhice, na pele de Antonio Fagundes, ele se põe, diante de nós, espectadores, cada vez mais Corleone, como o Michael que foi capaz de matar o próprio irmão em nome do código mafioso. O ódio pelos parentes do Capitão Rosa (Rodrigo Lombardi) ainda rege suas vontades.

 

Mas agora, o cheiro de pétala deu lugar ao aroma de Pitanga. LaPitanga... de Camila Pitanga, que - com um gestual contido, calculado, leve - contagia o horário das 21h da TV Globo de elegância na pele de Maria Tereza. Seu amor por Santo (Domingos Montagner) foi abafado por ordem de Afrânio, que casou a filha com Carlos (Marcelo Serrado, numa atuação nas raias do bom humor). Mas a paixão segue, como é direito de todo bom melodrama.

 

Mas Velho Chico não se basta nesse núcleo central, pois, como dizia um antigo grego anterior a Sócrates, "não é possível se banhar duas vezes nas águas do mesmo rio". E às margens de São Francisco, Heráclito sopra como alternativa de foco dramático a figura do vereador Bento, encarnado por um titã chamado Irandhir Santos. Com ele, a trama percorre leitos mais políticos, na afirmação da reforma agrária, mas não tira o olho da condição romântica. O coração de Bento há de bater pela professorinha Beatriz (Dira Paes), numa atração inevitável entre a harmonia do Legislativo e a prosperidade da Educação. São as novas metáforas de uma trama que segue em busca de um estado de exceção para compreender as equações simbólicas capazes de dar alguma explicação possível para o Brasil.

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