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De antena ligada nas HQs, cinema-pipoca, RPG e afins

Alumbramento do Ceará nas telas do Uruguai com o encantador 'Inferninho'

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Por Rodrigo Fonseca
Atualização:
Yuri Yamamoto faz de Deusimar uma das personagens mais fascinantes de nosso cinema em "Inferninho"  Foto: Estadão

Rodrigo Fonseca É difícil citar um filme brasileiro contemporâneo tão redondinho e, ao mesmo tempo, tão vivo em seus laços com a invenção do que Inferninho, produção do Ceará que deitou e rolou em elogios em Roterdã, em janeiro, e agora rouba sorrisos e forma fãs no 36º Festival Cinematográfico Internacional Del Uruguay, em cartaz até dia 7 em Montevidéu. Basta uma sequência - um sujeito vestido de coelho, numa fantasia cor de rosa, vira para sua chefe trans, a dona de um bar furreca no Nordeste, e diz "Não maltrate a vida" - para que este Cortina de Fumaça de Fortaleza (CE) chegue ao ápice de seu tom bukowskiano, conduzindo nosso olhar à transcendência com a exegese da derrota. Com a tonalidade de uma dose de Campari, a fotografia incrementa toda a pomabajirice do ambiente onipresente - um boteco de quinta - ressaltando em sua pigmentação o vermelho, o marrom e o vinho. É ali que Deusimar (vivida por Yuri Yamamoto) se candidata ao posto de personagem mais fascinante do cinema nacional de 2018: uma travesti que cuida daquela bodega desde criança, por herança de sua vó, vivendo o desencanto das paixões de ocasião. Dirigido com um rigor poético dos mais finos por Guto Parente e Pedro Diógenes, no limite do lúdico e do louco, entre Buñuel (Simão do Deserto) e Marco Ferreri (Crônica de Um Amor Louco), o longa-metragem acompanha a educação sentimental de Deusimar, sempre orientado pela questão central da obra dos diretores: a lealdade de amigos. Eles e os irmãos Pretti nos deram, em 2010, um filme definitivo (não apenas sobre o assunto, mas também pela abertura de novos veios estéticos em nossa trajetória audiovisual): Estrada para Ythaca. E, desde então, seguem filmando o mesmo mote: as provas que a vida nos aplica e o quanto a amizade nos ajuda a tirar 10+ nos exames ligados ao verbo amadurecer.

 Foto: Estadão

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Roterdã definiu o longa como uma "carinhosa homenagem aos derrotados que afogam as mágoas em bares", em um artigo da Variety. Mas, de certa forma, homenageia-se também o instinto de perseverança (na fossa) dos que apostam contra eles mesmos. E Deusimar é desses. Danada, ela administra seu botequim no cabresto: atrasou, ela não paga, como aprende a cantora Luizianne (a ótima Samya de Lavor), funcionária que mais ocupa um papel filial na vida desta microempresária da Caninha da Roça. Um dia chega um príncipe encantado com cara de Sean Penn, Jarbas (o cafuçu Demick Lopes), que vai desestabilizar Deusimar com suas bravatas, sua pegada e seu roçar de queixo num pescoço entalado de desgosto com a monotonia da inércia. Ele é uma chama que incendeia hipóteses naquela nau desgovernada, frequentada por tipos nas margens da caricatura. Há um dublê de sereia, um esboço de Wolverine que usa seu adamantium como espeto de churrasco e uma estátua viva, daquelas prateadas, sem fala.

Samya De Lavor: ave canora  Foto: Estadão

Ali, entre rusgas com Luizianne e esporros no mordomo-coelho supracitado (Rafael Martins), Deusimar vai aprender que o esgoto da cobiça humana fede mais do que a privada de seu bar, virando uma espécie de Cabiria numa terra de Zé Pilintras que se deixa conspurcar por aventureiros na miopia de novas sensações. Com sua jornada, Guto e Diógenes mostram o quanto a produtora Alumbramento, coletivo cearense de altas ambições narrativas, amadureceu num intervalo de oito anos. A maturidade se faz notar em especial na reflexão sobre identidades de gênero, tão propositalmente embaralhada (e sedutora) quanto a de Boi Neon (2015), a Fogueira Santa de nosso cinema nesta década.

Inferninho está em Montevidéu na seleção Focus Brasil do Festival do Uruguai, na qual entraram ainda pepitas como Açúcar, Elon Não Acredita na Morte, Não Devore Meu Coração e Unicórnio. 

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