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'1976', o 'História Oficial do Chile, ilumina Cannes

Por Rodrigo Fonseca
Atualização:
O cinema do Chile sai ovacionado de Cannes com "1976", um olhar sobre a era Pinochet a partir da intimidade de uma mulher confrontada com os traumas de uma nação  Foto: Estadão

RODRIGO FONSECA Impossível não pensar no argentino "A História Oficial" (Oscar de Melhor Filme Estrangeiro, em 1986) diante do mergulho que seu hermano de América do Sul "1976", do Chile, dá nas águas pantanosas do ciclo ditatorial latino das décadas de 1970 e 80, em meio à programaçao da Quinzena de Realizadores do 75º Festival de Cannes, hoje em seu penúltimo dia. Impossível também é entender por que esta joia não está na disputa pela Palma de Ouro. É um dos melhores longas de todo o evento francês em 2022. A direção é da atriz Manuela Martelli, vista em "Machuca" (2004). O olhar dela é de um existencialismo arrebatador. Na trama, uma mulher de classe média alta, Carmen (Aline Kuppenheim), tenta sastifazer o pedido de um amigo leal, o padre Sanchez (Hugo Medina), que recorre a ela atrás de proteção para um jovem ferido no garrote de Pinochet. O tal rapaz, Elias (Nicolás Sepúlveda), foi baleado e requer cuidados. Ela sonhava em integrar a Cruz Vermelha, mas não teve essa chance por contra do interdito de seu pai machista. Mas, na situação que se desenha diante dela, Carmen tem a chance de ser cuidadora de uma alma alquebrada pela violência política de um Estado que foi agrilhoado a um processo ditatorial. Na relação com Elias, ela vai desbravar uma outra realidade chilena. E nos leva consigo.

A atriz e cineasta Manuela Martelli Foto: Estadão

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Existe em "1976" uma reflexão sobre o Tempo que vai além da política, que parece ilustrar o peso do passado nos corpos, nos lares. O que seria essa mirada sobre esse período histórico? Manuela Martelli: A maior parte das investigações históricas lida com grandes acontecimentos e, quase sempre, com eventos ligados a figuras masculinas. Eu escolhi falar de uma data que coincide com a morte da minha avó sob uma perspectiva feminina. É um esforço de olhar um ano sob a mirada de uma mulher anônima.E de que forma a vida íntima de Carmen, sua protagonista, numa casa, reflete esse Chile do fim dos anos 1970? Manuela Martelli: Tudo parte de uma vontade de saber como é que se filtra o peso do espaço público, sob o horror de uma ditadura, no espaço privado. Não se trata de uma história sobre uma mulher isolada e, sim, de uma pessoa que tem uma sensibilidade particular.Seu filme consegue fugir de um recorrente claustro documental do cinema latino-americano que impõe uma perspectiva sociológica a filmes com a proposta de ir além de interesses argentários. Mas o que gera essa dimensão de sociologia e essa medula documental? Manuela Martelli: Traumas das ditaduras nos obrigam a falar desse tema. Isso vem desde os anos 1960. Mas não há no Chile, hoje, um movimento, um cinema único. Há várias dimensões que estão se apresentando nas nossas telas.

"Armageddon Time" carrega a doçura e a inquietação de James Gray Foto: Estadão

Neste 27 de maio, o balneário de Cannes confere uma cópia restaurada de "Cantando na Chuva", celebrando os 70 anos do clássico dos musicais. No fim do dia, a cidade vai conferir os ganhadores da já citada seção Un Certain Regard. Que seu júri, presidido pela atriz italiana Valeria Golino, não se esqueça de "Corsage", drama feminista histórico com CEP na Áustria, deu um realce na carreira da diretora Marie Kreutzer e de sua atriz, a luxemburguesa Vicky Krieps. Ela encarna a imperatriz Elisabeth da Áustria (1837-1898), apelidada de Sissi, como um espírito inquieto que encara xenofobias e ilusões afetivas em busca do desejo de afirmação. A direção de arte de Monika Buttinger estonteia. Cresce muito pela Croisette a boataria em prol da carreira comercial de "Chronique d'une liaison passagère", de Emmanuel Mouret (França): Especialista nas fraturas do afeto, o realizador de "Les choses qu'on dit, les choses qu'on fait" (2020) joga nos gramados da comédia com desenvoltura de craque. O que ele arranca de Sandrine Kiberlain e Vincent Macaigne evoca Meg Ryan e Tom Hanks em "Sintonia de Amor" (1993). Taquicárdico e falador, o obstetra Simón, vivido por Macaigne, passa a arrastar um caminhão por uma mulher empoderada, mãe solteira e cheia de certezas chamada Charlotte, vivida por Kiberlain. Por ser casado, ele entra nesse romance cheio de neuras. Mas a balança amorosa penderá por acaso. Sábado saem os ganhadores da Palma de Ouro e Jerzy Skolimowski é o mais talhado a vencer com sua alegoria em prol dos animais: "EO". É a saga de um burrico na luta pela sobrevivência. Mas há uma torcida armada em prol de James Gray, ansiando por algum troféu para seu encantador "Armageddon Time". Produção do brasileiro Rodrigo Teixeira, este drama geracional evoca "Os Incompreendidos" (1959), de François Truffaut, ao enveredar por angústias de jovens rebeldes. O aborrescente em que estão é um jovem judeu de família rica que vai testemunhar a exclusão racial de seu melhor amigo na Nova York dos anos 1980, em suas áreas mais intolerantes. Anthony Hopkins vive o avô batuta do rapaz.

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