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Pequenas neuroses contemporâneas

Opinião|Tocou Raul?

Algum músico que já era lenda antes de morrer tem recorrentemente o nome gritado em shows de outros músicos?

Atualização:

Algum músico tem uma composição pedida rotineiramente quando, numa aglomeração, o silêncio se faz, apesar de ter morrido há 23 anos?

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Algum político ou artista brasileiro tem um dia dedicado a ele, em que fãs se fantasiam como ele, circulam pelo centro de São Paulo e cantam numa manifestação essencialmente popular e espontânea?

Não só em shows, mas em casamentos, baladas, batizados, passeatas, no intervalo entre músicas, na indecisão de como animar uma festa, o grito é sempre entoado, como um ato de rebeldia e desobediência:

"Toca Raul!"

A obra de Raul Seixas sobrevive, continua contemporânea, e pode ser revista no documentário O Início, O Fim e O Meio, de Walter Carvalho.

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O legado de Raulzito não é apenas a mistura do pensamento maquiavélico ("o fim justifica os meios"). É bem mais profundo e perspicaz.

Apesar de ele ter anunciado: "Eu não sou besta pra tirar onda de herói. Sou vacinado, eu sou cowboy. Cowboy fora da lei. Durango Kid só existe no gibi. E quem quiser que fique aqui. Entrar pra história é com vocês."

Mas entrou, ao fundir o rock com o baião, sem as sutilezas dos seus conterrâneos tropicalistas. Raul foi a tropicália que tocou no rádio.

Propôs reflexão e sublevação no quartinho da empregada, na tela da TV, no Chacrinha e nos shows em ginásios.

Fundiu o alcance vocal de Elvis com o de Luiz Gonzaga e provou a semelhança entre o produto da corte e a improvisação da colônia, entre deus e sua cria.

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A primeira grande aparição foi no Festival Internacional da Canção (1972), provocando a bossa nova e o utopismo messiânico da época: "Let me sing my rock'n'roll. Não vim aqui tratar dos seus problemas, o seu Messias ainda não chegou. Eu vim rever a moça de Ipanema e dizer que o sonho terminou."

Depois, Mosca na Sopa (1973), quando a ditadura brasileira unificada combatia em todos os fronts.

Quem não entendia a ameaça debochada do roqueiro maluco, dançava como um alucinado nas festinhas infantis, que era o meu caso: "Eu sou a mosca que perturba o seu sono, eu sou a mosca no seu quarto a zumbizar."

Opositores no pau de arara. Jornais e revistas enquadradas pela censura. Artistas silenciados pelo exílio e ameaças. E o roqueiro entortava a cabeça da repressão política: "Não adianta vir me dedetizar, pois nem o DDT pode assim me exterminar. Porque você mata uma, e vem outra em meu lugar."

Desta vez, a mistura era o samba de roda baiano, o canto para os orixás e afoxé, com rock pesado.

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No mesmo disco, a música Ouro dos Tolos, o maior deboche do projeto Brasil Grande e do Milagre Brasileiro, um alerta existencialista à classe média emergente brasileira.

"Eu devia estar contente, porque eu tenho um emprego, sou um dito cidadão respeitável e ganho quatro mil cruzeiros por mês."

O regime conseguia o selo de excelência de 100% de autoritarismo- resistência armada dominada, opositores silenciados. O empresariado e a população de bolsos cheios pareciam felizes. Médici tinha altos índices de aprovação.

Não restava nada no campo da contestação: quem sobreviveu estava fora do País ou de si, dopado, maluco beleza.

Quando o Regime entulhou as TVs com propagandas de Brasil Grande, difundindo os feitos do crescimento recorde, em que o dinheiro emprestado do exterior estava barato, e o País criou infraestrutura suficiente para a importação de parques industriais, ele compôs:

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"Eu devia estar feliz, porque consegui comprar um Corcel 73... Eu devia estar sorrindo e orgulhoso por ter finalmente vencido na vida. Mas eu acho isso uma grande piada e um tanto quanto perigosa."

Perguntado se ele fazia música de protesto, respondia de bate pronto: "Faço raulseixismo."

O verso que Caetano canta de boca cheia do documentário, palavras que propositalmente não cabem na melodia, um pré-rap, contém o mais profundo dos sentimentos literários, a falta de sentido da vida: "Eu devia estar feliz pelo senhor ter me concedido o domingo pra ir com a família no Jardim Zoológico dar pipoca aos macacos. Ah!, mas que sujeito chato sou eu, que não acha nada engraçado, macaco, praia, carro, jornal, tobogã. Eu acho tudo isso um saco..."

A maior ironia é que a música foi composta em cima de acordes de Detalhes, do neo conformista Roberto Carlos, artista que deixava a irreverência do rock para se acomodar nas plumas de uma causa mais romântica.

 

 Foto: Estadão

 

Em 1974, os ideais libertários de Maio de 68 desembocaram num fracassado projeto armado de terrorismo isolado. Baader Meinhof, Brigadas Vermelhas, ETA, IRA, OLP confundiam e assustavam a juventude mais do que agregavam. A utopia foi questionada.

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Raul lançou com Paulo Coelho a Sociedade Alternativa, uma terceira via, que defendia o direito de ter riso e prazer. No manifesto, pregavam:

"O espaço é livre. Todos têm direito de ocupar seu espaço. O tempo é livre. Todos têm que viver em seu tempo e fazer jus às promessas, esperanças e armadilhas. A semente é livre. Todos têm o direito de semear suas ideias sem qualquer coerção da inteligência ou burrice. Não existe mais a classe dos artistas."

"Todos nós somos capazes de plantar e colher. Todos nós vamos mostrar ao mundo e ao Mundo a nossa capacidade de criação. Todos nós somos escritores, donas de casa, patrões e empregados, clandestinos e careta, sábios e loucos. E o grande milagre não será mais ser capaz de andar nas nuvens ou caminhar sobre as águas. O grande milagre será o fato de que todo dia, de manhã até a noite, seremos capazes de caminhar sobre a Terra."

O governo Geisel não entendeu muito bem o que propunha esta sociedade com pinta de subversiva, prendeu os dois e os mandou para o exílio.

Ele preferia ser uma metamorfose ambulante a ter opinião sobre quase tudo. Mas não conseguia deixar de ver, pensar, propor e rediscutir os rumos da arte e da política do seu País.

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Com metafísica, espiritismo, antropofagia, de mãos dadas com o povo, ele era o nosso sacrifício, a placa de contramão, a vela que acende, a luz que se apaga, a beira do abismo, o tudo e o nada, raso, largo, profundo, os olhos do cego, e a cegueira da visão.

Opinião por Marcelo Rubens Paiva
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