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Pequenas neuroses contemporâneas

Opinião|supersuper-homem

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Atualização:

Uma amiga brasileira teve uma relação com um americano e se surpreendeu. Defendeu:

São os melhores.

Era educado, gentil, carinhoso. Narrou:

"Ele me pedia licença para tudo. Perguntava: Posso te beijar? Sim, eu respondia. Posso abaixar a alça do seu vestido? Sim. Posso beijar o seu pescoço? Sim. Posso segurar? Sim. Posso abraçá-la mais forte? Sim..."

Comecei a rir, enquanto ela enumerava a trajetória de propostas e permissões por etapas.

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Até, curiosa, me perguntar por que eu ria tanto.

"Ele segue o manual", expliquei.

"Que manual?"

No começo dos anos 90, os Estados Unidos acompanharam o julgamento de Mike Tyson com atenção redobrada.

Não era apenas mais uma disputa racial.

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Questionava a prática sexual de toda a sociedade.

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Ele era acusado pela ex-miss América Negra, Desiree Washington, de assédio e estupro. A única prova era o testemunho dela contra o dele, um dos maiores ídolos do boxe, imbatível no tablado, mas com queixo de vidro na vida pessoal.

O caso ganhou a dimensão de um ringue em que se luta com conceitos.

Mas definiu enfim as regras que os novos tempos pediam: afinal, o que é juridicamente assédio sexual.

A resposta foi dada pela Corte. A partir do momento que um homem escuta um "não" de sua parceira, deve parar. E para aqueles que defendem que um não pode ser um charminho, inerente ao jogo de corte, e requer mais talento do sedutor, lembrem-se: pode dar em cana se prosseguir.

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Como deu para Tyson, que viu por quatro anos o sol nascer quadrado.

O caso deu munição à guerra dos sexos.

Juízes, professores, empregadores, atletas, colegas de sala de aula passaram a ser processados por assédio sexual. Até uma grande rede de supermercados recebeu um processo milionário coletivo de suas funcionárias. E perdeu.

Normas foram criadas.

Numa universidade de Chicago, determinou-se que professores e alunas se reunissem com as portas abertas. Se um professor estivesse num elevador, e uma aluna entrasse, ele deveria sair, para não levantar suspeitas.

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A paranoia se estendeu.

Não se sabia mais o que era xaveco ou abuso.

Nos bares, homens evitavam olhar para as mulheres. Tinham os olhos fixos em livros e revistas, ou no vazio, temendo escutar: "Tá olhando o quê?!"

A taxa de natalidade deve ter despencado naqueles anos de submissão ao politicamente correto.

Quando me inscrevi para estudar na Universidade de Stanford em 1994, recebi um formulário a ser preenchido e um manual do significado de assédio sexual. Ilustrado.

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Folheei curioso quando cheguei em casa.

Dizia que cada passo da sedução deve ser consensual. Que se deve pedir permissão para acariciar, beijar, tirar a roupa, abraçar, amar. E que, se em determinada etapa, escutarmos um "não", a corte deve ser interrompida imediatamente. Pois não deve existir um segundo não. Seria assédio, caso ele fosse proferido.

Foi o erro de Tyson, que lhe custou a liberdade.

Por isso, informei a minha amiga, que ficou decepcionada:

"Talvez os americanos sejam prudentes e preservam a sua liberdade. Por isso ele perguntou se podia abraçar, beijar, abaixar a alça do vestido etc. Deve conhecer o manual."

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 Foto: Estadão
 Foto: Estadão
 Foto: Estadão

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Quem acompanha a série de TV Mad Men, vencedora do Globo de Ouro e do EMMY de 2008 e 2009 (Melhor Série Dramática), que se passa no começo dos anos 60, surpreende-se com o ambiente em que a tensão sexual contaminava e ainda contamina muitas repartições.

O título é uma corruptela de homens da Madson, avenida em que se concentravam as agências de publicidade de Nova York.

Mas retrata também a loucura de um universo dominado pelos homens, em que quem manda são eles. A elas, o cargo de secretárias e telefonistas.

E o assédio entre patrões e empregadas é rotina, num explícito jogo de poder.

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Ainda é na maioria dos locais de trabalho.

Chefes paqueram subalternas.

As novas estagiárias viram alvo de toda a munição masculina.

E a gata do escritório vive o drama de provar que, além de gostosa, tem cérebro.

Na primeira temporada da série, a mulher do protagonista, Betty, "tem tudo": uma boa casa, um bom marido, Don, publicitário bem pago, filhos saudáveis. No entanto, inexplicavelmente, sente pânico. Vai ao psiquiatra, inconformada por duvidar da qualidade de sua vida, enquanto o marido visita rotineiramente o leito de uma amante beat às tardes.

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Este costume é um dia abalado pelos pilares da emancipação sexual da mulher.

E mudou o homem.

Vemos nascer o super-homem.

Não aquele de Nietzsche, que se sente só e deve criar suas próprias regras e destino, já que Deus está morto.

Mas o que deve radicalmente aposentar as certezas ditas pelo comportamento passado e aprender com o feminino: a cozinhar, trocar fraldas, lavar a louça, cuidar de tarefas domésticas e, surpresa, obedecer.

Algo inconcebível por nossos avôs.

O super-homem deve agora ser duro, mas sensível em equilíbrio, decidido e duvidoso, romântico, mas nem tanto, zelar pela segurança e dividir, respeitar e tolerar, entender as divergências e a inconstância.

Aceitar ganhar menos que a mulher, ser a babá da casa eventualmente, e até tirar as botas da dona do lar, se ela chega cansada depois de uma rodada de trabalho e uma esticada num pôquer com as amigas.

Afinal, ela agora tem salário, planos de saúde e aposentadoria, é suficientemente independente para dizer good-bye, caso seu super-homem não seja um supersuper-homem.

Opinião por Marcelo Rubens Paiva
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