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Pequenas neuroses contemporâneas

Opinião|Singing in the rain?

Atualização:

Não tem jeito, dependendo do bairro, choveu, acaba a luz, mesmo em ano de eleição.

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Em janeiro, mais de mil árvores caíram na cidade, levando junto a fiação. Por que não as podam, não escoram as mais frágeis ou corroídas por cupins? Porque nem a queda de mil árvores é suficiente para comover um burocrata municipal.

Por que não enterram a fiação? O ex-vereador Nabil Bonduki passou quatro anos do mandato tentando entender e organizar a ocupação do solo. Enviou um projeto de lei propondo aterrarem os fios e criarem galerias subterrâneas, para garantir a livre circulação de pedestres. Não recebeu apoio.

Matou a charada: não interessa às concessionárias de exploração de serviço público a fiação subterrânea.

Simples. A prefeitura passou a alugar o espaço aéreo para a Eletropaulo instalar os postes, que por sua vez aluga os totens de concreto para as telefônicas, tevês a cabo, redes de transmissão de dados e de fibra ótica. Ninguém quer abrir mão do dinheirinho que corre à vista de todos.

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A concessionária entrou com uma liminar, defendendo que o aluguel passou a ser cobrado depois da privatização. Portanto, ela teria o direito adquirido de não pagar. E não paga. Mas cobra dos outros.

Enfeia a cidade, interrompe os serviços temporariamente, porém dá lucro. É o símbolo do desprezo.

Quinta-feira, dia 4, eu tomava um café na esquina com um amigo, quando começou a chover às 17h. Sugeri de imediato subirmos para o meu apê, antes que acabasse a luz.

Dito e feito. Entramos em casa e, bum, explodiu algum transformador perto, caiu alguma árvore ou um meteorito, ou um gato se abrigou no lugar errado, e lá se foi a luz.

Cacei as velas pela casa. Separei alguns livros. Semanas antes, eu ficara cinco horas no escuro, sem velas. Desta vez, me preparara.

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Não segui os conselhos do Kiko, com quem passei o blecaute de 2009, que tem um verdadeiro kit de sobrevivência em casa, lanternas de emergência, lampiões e violão acústico à mão. Mas comprei velas de reza, aquelas que duram sete dias.

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Meu amigo se foi. A chuva, idem. Até apareceu um disparatado pôr-do-sol. E depois a lua. Eis que descubro que não se consegue ler com velas de reza. Nem em braile. A luz é muito fraca. Encontrei tocos de velas de outros apagões. Entendi o mecanismo delas. Não é a grossura do rolo de cera que garante a luz de que um leitor precisa. É a do pavio. Ele é o rei do candelabro.

Sugestão: que se informe nas embalagens a duração de uma vela (além das de reza), pois as minhas duraram poucas horas, e, descobri, não se lê à luz da lua. Restou a chama infeliz de algumas velas de reza, que iluminam apenas os espíritos.

Passei a noite brincando com Hugo, o gato. Ao ponto de ele se entediar. Nunca ninguém brincara com ele por tanto tempo. Esses humanos são muito instáveis, deve ter pensado, ou me ignoram, ou me estressam.

Nem telefonei para a Eletropaulo. Imaginei a atendente fazendo as unhas e, lendo a Contigo, respondendo blasé: "Previsto para daqui a duas horas". Elas sempre respondem isso. Talvez seja uma voz gravada quem nos atende.

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Imaginei os funcionários da concessionária jogando truco, esperando a chuva passar, o trânsito melhorar, o jogo acabar, para irem a campo. Sentem-se pequenos deuses neste mundo de mandachuvas.

Não foi o primeiro gesto d'Ele dar a luz? Se vocês pensam que o cara da Net, da banda larga, da configuração do roteador, o técnico da geladeira, da bateria arriada são os tais, pois agora aprendam, cristãos: somos o messias que os salvarão do tédio e devolverão suas rotinas, tenham fé.

No escuro, me restou a varanda, a vista da cidade. Vejo toda a zona oeste. E parte da norte. Só a minha quadra estava sem luz. E como estamos dependentes dela...

Planejo comprar uma extensão longa e instalar pelo céu até uma casa próxima. Se acabar a minha luz, empresto a do vizinho, e vice-versa.

Então, meia-noite, escuto um caminhão circular o meu condomínio. Chegaram. Me deem a redenção, sou um pecador, quero a salvação!

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Ele parou. Encontrou o problema. Eu via apenas luzes piscando. Ouvia suas vozes. Deviam estar dizendo: "Isso é moleza". Mais barulho. E se foram. Sem nos darem a luz de que tanto precisamos. Voltem, voltem, não desistam, nós acreditamos! Em vão. Mais fácil um camelo passar pelo buraco de uma agulha.

Minutos depois, outro caminhão. O mesmo procedimento. Isso, tenham fé. Mas, desta vez, esticando o pescoço, consegui ver. Não era aquele com quem Deus se comunica mesmo num blecaute. Eram os caras recolhendo as caçambas, com seus caminhões potentes e a eficiência de dar inveja a muito serviço público.

Então, refleti. Vamos dar para eles a tarefa de administrar a cidade: destemidos, pontuais, acostumados ao trabalho pesado. Serão eles os salvadores?

Sim, a luz voltou na manhã seguinte, às 10h15. Mais de 15 horas sem luz. Dessa vez se superaram. Restaram a poça de água na cozinha (degelo do congelador), mistura estragada e as malditas velas de reza ainda acesas. Heresia!

Opinião por Marcelo Rubens Paiva
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