PUBLICIDADE

EXCLUSIVO PARA ASSINANTES
Foto do(a) coluna

Pequenas neuroses contemporâneas

Opinião|Rádio Cabeça

Eu estava ontem entre as 30 e tantas mil pessoas que viram Radiohead na Chácara do Jockey. Cheguei em cima da hora, sem trânsito, sem chuva, sem ver a volta de Los Hermanos (eu não aguentaria ficar das 18h até a madrugada) e Kraftwerk (banda que eu já achava chata nos anos 80, quanto mais agora...).

Atualização:

Radiohead é a minha banda de estrada. Não pego uma Dutra sem tê-la estourando nos altofalantes. Combina com a solidão das seis horas de estrada e suas sutilezas, curvas, serras e retões. Ela se encaixa em meus dias tristes e introspectivos- nas paixões mal acabadas, nas noites em que não se quer sair de casa, abrir um livro, atender um telefone.

PUBLICIDADE

O cenário- espécie de néos de 15 metros de altura, que mudavam de cor de acordo com os acordes e o clima da música-, a performance impecável e o som eram de arrepiar. Cada um vai dizer: "Puxa, não tocaram Airbag". Eu também não ouvi todas as minhas preferidas. O show começou mesmo no bis (e foram 4), em que eles abriram a mão e concederam: tocaram hits.

Fui com o amigo Paulo Ricardo, e nos lembramos dos Stones, que improvisam, tocam só sucessos, nada conceitual: puro rock and roll. Tem banda que é assim, programa computadores e toca exatamente como nos discos, prefere divulgar as músicas do último CD e eventualmente percebe que tem público à frente. Então, por que fazer um show para mais de 30 mil? Tudo bem, vai...

Comprei o ingresso pela internet no ano passado. Não aguentaria esperar um convite VIP ou me credenciar como IMPRENSA. Depois, eu soube que não tinha área VIP, o que aumentou a minha simpatia pela banda- aquele espaço enorme entre o pagante e o palco, em que se acotovelam os convidados da produção. Nada que pudesse promover um esbarrão a menos de 250 metros entre Dado e Luana, ou o novo namorado de Suzana Vieira, ou o recente eliminado do BBB. Dessa vez, nós, vampiros de promoters, tivemos de colocar a mão no bolso e, como todos os mortais, pagar.

Isso me lembrou um trecho do meu romance mais recente, A SEGUNDA VEZ QUE TE CONHECI, aqui na versão não editada:

Publicidade

Você nunca entendeu a essência da minha crise pessoal, vulgo "ansiedade", doencinha contemporânea e corrosiva: a frustração de um jornalista é incurável, ou, para usar um termo que entrou em moda, está no DNA. Na maioria das vezes, é apurada a notícia que vende. Aderimos à ideologia que agrada ao consumidor. Temos interesses comerciais? Ideais e convicções? Temos. Mas... Tá bom, nossa moral está comprometida pela substância que nos alimenta: o cachê. Nunca me iludi, baby. Mas se o ingresso de um show imperdível está esgotado, eu saco a minha carta na manga, ou melhor, minha carteira de jornalista do bolso, a minha credencial, meu crachá, e dou uma "carteirada" para encerrar impasses e abrir portas. Por que não? E você pode vir comigo, meu amor. Tenho sempre direito a "mais um"- um acompanhante. Ariela, a bela, não quer mais ser acompanhante do ma-ri-di-nho dela? Buscamos ainda os caminhos que nos levam à área VIP, baby, onde a bebida e a comida costumam ser fartas, de graça e de melhor qualidade. Que se danem os mortais não-jornalistas. Somos a elite do público. Nos querem em suas festas e eventos. Você vai deixar a Corte, chuchu? Nos pedem por favor para escrever sobre eles, eles, os incomuns, sobre seus produtos, sobre os seus feitos e eventos, livros e peças, filmes e perfumes, bebidas e jóias, até sobre a cor do vento e o sabor da água. Nos pedem nota, matéria, canto de página, capa, uma foto, uma ponta, uma linha, qualquer palavra. Minha branquinha, você sabe muito bem, jornalistas são endeusados e mimados. Só os otários não se aproveitam. Os otários e os éticos, como você, paixão, atributos que não correspondem com a descrição da maioria das ocupações citadas e clasificadas. Enquanto a massa se aperta, apesar de ter pago caro por um ingresso, o jornalista esperto como eu leva a esposa para a área VIP, diante do palco. Temos banheiros limpos, tratamento diferenciado, manobristas, sem precisar desembolsar um tostão. Ariela, paixão, vai sair fora?

Opinião por Marcelo Rubens Paiva
Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.