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Pequenas neuroses contemporâneas

Opinião|Pensa que é fácil ser escritor?

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Atualização:

 

Da coluna: A Dura Rotina de Um Escritor.

Já fui chamado de machista, sexista e homofóbico.

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De farsante, me chamavam nos anos 1980.

De comunista, desde o colegial. Petista e esquerdopata, escuto direto.

Esquerdomacho, virei um neste ano - em que me chamaram também de racista, antissemita, e quase fui processado e condenado a pagar uma indenização a Gilmar Mendes, o magistrado mais impopular da história da República, por prejuízos à sua honra, condenação da qual Monica Iozzi não escapou.

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Que ano...

Meu primeiro livro, Feliz Ano Velho, precisa ser revisto periodicamente. Termos, apelidos e expressões que eram usuais numa década tornaram-se ofensivos na seguinte. O livro não é reescrito, mas enxugado. Daqui a anos, talvez sobrem apenas algumas páginas, e terei que mudar o título, por ser ofensivo a alguém.

Não me queixo. Me pergunto como foi possível usarmos anteriormente termos e expressões que eram ofensivos, e só depois de décadas percebermos.

Centenas de mulheres, no ano retrasado, durante a Flip, numa praça lotada no centro de Paraty, fizeram coro: "Machista!"

Eu mediava um bate-papo ao ar livre entre Maria Ribeiro, Xico Sá e Gregório Duvivier, no primeiro dia da feira.

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Estava feliz e confortável entre ídolos. Especialmente ao lado de Maria, amiga há quase 30 anos, com quem ri, trabalhei e acabara de dirigir uma peça de teatro complicadíssima, viajei, convivi, ciceroneei, testemunhei sua evolução no palco e descobri: tornara-se uma das maiores atrizes de sua geração.

Íntimos, temos uma quantidade enorme de private jokes. Costumamos nos provocar até ao vivo. Ela me cutucava, eu devolvia com mais sarcasmo, e ela com mais ainda.

O público, fã de Maria, não nos entendia. Quis se manifestar. Olhei para trás, procurando os olhos dos organizadores. Não, a plateia não poderia se manifestar, nem microfone tinha para isso, e eu tinha sido alertado à conhecida prática dos debates da Flip.

Foi quando começaram: "Machista!"

A mais exaltada gritava: "Eu odeio machistas, me dá este microfone!" Joguei o microfone para ela e fiquei repensando a minha vida. Eu não podia ir embora. Estávamos rodeados, o palco, tomado. Fui chamado de machista o resto da noite.

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Olhei para o céu. Só falta começar a chover agora.

Começou a chover.

Mais tarde, a GloboNews nos procurou. Queria repercutir a polêmica que tivemos num debate ao vivo para centenas de pessoas. Sorrimos. Eu e Maria afinamos o discurso e dissemos que não rolou nada demais. Fui para a pousada, fiz o check-out e parti de madrugada. Perdi o resto da Flip 2015.

 

A peça E Aí, Comeu? foi escrita para indicar a decadência do discurso masculino, da piadinha de bar, do papinho malicioso e desrespeitoso praticado por caras da minha geração. A maior parte do público entendeu. Virou uma sensação. Costumávamos fazer debates depois da peça sobre a necessidade de o homem repensar o discurso e rever seu papel.

Psicanalistas, psicólogos, acadêmicos e estudantes a citavam. Ganhou prêmio de melhor texto. Hoje, sou chamado de esquerdomacho por causa de uma peça intitulada E Aí, Comeu? por gente que não a viu.

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Uma década da minha literatura é questionada.

Tudo porque minha editora, a genial Isa Pessoa, me encomendava livros em que eu falaria de mulheres. Dizia que eu entendia da alma feminina, e as leitoras amariam ler a minha visão sobre elas.

Foram quatro: Malu de Bicicleta, O Homem Que Conhecia as Mulheres, A Segunda Vez Que Te Conheci e As Verdades Que Ela Não Diz.

Flaubert, Tolstoi, Machado de Assis e Truman Capote fizeram a fama escrevendo sobre mulheres e a opressão que sofrem.

Com a predominância do lugar de fala, Madame Bovary, Anna Karenina, Dom Casmurro ou Quincas Borba e Bonequinha de Luxo jamais deveriam ter sido editados. E Chico Buarque jamais afinado um violão e abandonado o curso de arquitetura da FAU.

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Eu me vejo obrigado a, rotineiramente, fazer retratações.

Chegará um dia em que farei mais retratações ou darei explicações detalhadas do que quis dizer do que continuar aliado ao ineditismo.

A compreensão de texto é um déficit no Brasil.

A cegueira ideológica impede o entendimento de sutilezas, entrelinhas, ironias. Para um autor, ter que anunciar "é uma piada" é uma tortura.

Senti saudades do tempo em que me chamavam apenas de analfabeto, subescritor, e diziam que quem escrevia meus livros era uma comissão da editora.

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Professores de cursinho, assim como escritores, juravam em público que meus livros eram na verdade escritos por Caio Fernando Abreu. Manifestação de um preconceito a qual estou habituado.

Ser escritor, hoje, é um ser didático.

É, antes de tudo, um forte.

Dá vontade de largar tudo.

Opinião por Marcelo Rubens Paiva
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