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Pequenas neuroses contemporâneas

Opinião|Os Cometas da Memória

A pedidos. Juntei duas crônicas publicadas recentemente do Estadão. Deu nisso.

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Atualização:

Lucila tinha cabelos encaracolados. Era sorridente e mais baixa do que o normal. Desde que a conheci, no primário em São Paulo, fiquei apaixonado. Pensava nela quando subia na jabuticabeira de casa, para observar o suicídio das frutas maduras que se atiravam aleatoriamente dos galhos, enquanto minhas irmãs corriam pelo quintal. Havia um canto debaixo da escada da garagem. Era o meu canto. Por que adoramos tocas? O darwinismo deve explicar nosso encanto por cantos. Mas faz parte da seleção natural os amores platônicos? Meu pai decidiu se mudar para o Rio de Janeiro. Quando me comunicaram a notícia, sofri antecipadamente de saudades. Lucila... Como seria a vinha vida sem ela? Que desgraça! A primeira coisa em que pensei foi fugir de casa, para marcar posição e o meu protesto. Fui corrompido pela oferta de uma enorme festa só minha. Toda a escola seria convidada. Lucila então conheceria minha casa, minha árvore, meu canto. Correria pelo quintal. Brincaríamos. Apareceu uma multidão. A casa parecia uma quermesse. Teve palhaço e mágico. Eu nem sabia que tinha tantos amigos. A maioria eu não conhecia. Era difícil se locomover entre tanta gente. Não encontrava a minha amada. Me lembro que, num certo momento, me escondi na garagem, sufocado, estressado. E ela apareceu para se despedir, com aquele cabelo dourado cacheado, como molas. Lucila era a fim de mim também, eu tinha certeza. Ficamos juntos conversando. Toda a escola respeitou nossa privacidade. Nos demos as mãos e fomos ver outro número do palhaço. Passamos o resto do dia grudados. Foi uma única vez em que demos vazão para o nosso amor. Se eu não tivesse que me mudar, eu sabia, seríamos o casal mais feliz da cidade, eu, com 6 anos, e ela, com 5. Como a vida atrapalha histórias de amor... Que lição meu pai me dava, ao me amputar a paixão.

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Me mudei para o Rio. Meu pai fugia do estigma de paulista comunista inimigo da ditadura. Cassado e exilado dois anos antes, no Golpe de 64, voltou para o Brasil clandestinamente e imaginava ter menos visibilidade e mais oportunidades na Guanabara. Moramos no Leblon, a três quadras da Favela do Pinto. Na época, o bairro não tinha o status de hoje. Havia a favela dentro e um conjunto popular que assustava a elite, a Cruzada, o primeiro do gênero- criado por Dom Hélder Câmara. Bacana era morar em Copacabana e Ipanema. Jogávamos futebol na rua. Eventualmente, o jogo era interrompido: "Olha o carro." A regra era parar imediatamente. Cada rua tinha um time, com moradores da favela. A maior glória era jogar no campinho de terra da Cruzada. Lá, havia torcida e o campeonato definitivo. Minha rotina era de uma paz que nunca mais encontrei. Vivia na ex-capital do País, mas era como se eu estivesse numa pacata vila. Aos oito anos, eu pegava ônibus para ir à escola, Colégio Andrews, em Botafogo. De camisa de abotoar e bermuda azul de algodão, um sapato desconfortável preto e meias brancas escondendo as canelas, eu cruzava a favela. Invejava os amigos que não tinham aula e jogavam o dia inteiro.

Vivi no Rio com saudades. Pensava, sonhava, imaginava. Lucila. Lá, reencontrei meu melhor amigo, Edu, outro paulista exilado. Estudamos na mesma classe. Ele já estava enturmado, o que me ajudou no convívio. Ele também tinha irmãs. Tinha diálogo com as cariocas. Ficamos amigos de Roberta e Isabel, duas morenas amadas por toda a escola. Nas aulas, dividíamos as mesas com elas. Eu com Roberta, ele com Isabel, conhecida como Isaboa. Ou vice-versa. Passávamos os recreios com elas, para a inveja coletiva. Nas aulas de música, tocávamos triângulo, elas, coco. Ou vice-versa. Ficávamos juntos, fora do ritmo, tocando uma outra música, só nossa. Havia um obstáculo para o desenvolvimento de paixões. As duas eram maiores do que eu. Se não me engano, Roberta era a mais alta de todas. Para um moleque, é um entrave que afugenta o amor. Especialmente aos 8 anos. Apesar de toda a escola achar que namorávamos as duas, era pura amizade. E eu não me esquecia de Lucila e seus cachos malucos. Um dia, eu iria reencontrá-la.

Eu circulava pelo bairro de bicicleta. Muitas vezes, tinha que parar para cumprimentar e papear com os amigos. Nunca fui assaltado. Nunca sofri qualquer tipo de violência. Psicopatia social não estava em nossos dicionários. Pulávamos o muro do Clube Paulistano, para jogar bola. Depois, dividíamos o milkshake com os que não tinham dinheiro. Enfiávamos vários canudinhos num mesmo copo e contávamos até três. Sorte daqueles que, com bons pulmões, conseguiam sugar mais rapidamente o sorvete. No domingo, lotávamos uma Kombi para ir ao Maracanã, assistir ao Flamengo de Fio Maravilha, time do bairro. Os pais se revezavam. O meu nos levou certa vez. Ficou surpreso com a quantidade de palavrões que conhecíamos.

Num dia de semana, a praia amanheceu apinhada. Toda a favela correu para lá. Estavam chamuscados. Crianças choravam. Carregavam seus pertences. Na água, bonecas com fuligem. A favela tinha pegado fogo. Foram os militares, diziam. Até hoje pairam dúvidas. Viram helicópteros do Exército sobrevoando a favela na noite da tragédia. O tumulto durou uns dias. Certa manhã, tomávamos café, e um grupo de moleques invadiu a nossa casa. Não falaram nada. Foram pra geladeira e comeram com as mãos o que encontraram. Nem nos levantamos da mesa. Enfim, foram removidos. O filme Cidade de Deus começa com os favelados chamuscados chegando à sua nova morada, coincidentemente recém-inaugurada. O terreno abandonado foi aterrado em tempo recorde. Em meses, subiram prédios de até 17 andares. Os apartamentos foram comprados exclusivamente por militares, que receberam empréstimos descontados diretamente da folha de pagamento (soldos). O condomínio, que se estende por grandes quadras, com uma praça no meio, recebeu o apelido de Selva de Pedra, em homenagem à novela da Globo que fazia sucesso. A especulação imobiliária expulsou o democrático futebol de rua. Enviaram os pobres para os guetos. E o convívio pacífico virou poeira.

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Toda a molecada do bairro fazia uma conexão no Central-Gávea, ônibus 174- o mesmo sequestrado por Sandro Nascimento décadas mais tarde. Descíamos, depois da escola, para assistir a filmes de arte. Educação Sexual naquele tempo era uma piada, quando havia. O que aprendíamos estavam nos livros de Medicina Legal, no catecismo do Zéfiro, vendido clandestinamente nas bancas, e nos filmes proibidos para menores. Instalado na Rua Jardim Botânico, na rota dos ônibus que vinham de Botafogo, o Cinema Floresta, inaugurado em 1922, que em 1960 mudou o nome para Jussara, educou uma geração. Não sabíamos a diferença entre Nouvelle Vague e Cinema Novo. Nem que aquelas imagens causavam uma revolução da linguagem. Godard, Truffaut, Glauber? Não guardávamos os nomes dos diretores. Lotávamos a sala, pois o porteiro não pedia carteirinha, e queríamos ver mulheres nuas. Talvez a curiosidade tenha formado uma geração de cinéfilos. Muitos sonharam com Norma Bengell, nua em pelo, correndo em direção à câmera, numa praia deserta, como se suplicasse pelo nosso carinho- inesquecível cena de Os Cafajestes, de Ruy Guerra. Norma, Joana Fomm, Odete Lara, Leila Diniz foram nossas primeiras paixões. Admirávamos os franceses, com suas lindas atrizes, despudoradas, que não se intimidavam diante das câmeras e ainda por cima ganhavam prêmios. Sonhávamos com as personagens volumosas e pálidas de Roma, de Fellini. As incongruências do regime se ampliaram- que endurecia e censurava, empastelava e prendia, proibia peças e livros, mas não a pornochanchada. O pequeno cinema conhecia o seu nicho. Dedicou-se ao gênero que deu sobrevida ao cinema nacional, porém arranhou por décadas o seu prestígio. Todas ficavam peladas. Até as estrelas das novelas. Na tevê, Lucélia Santos botava nossas mães para chorar no dramalhão Escrava Isaura. Na sala do cinema cheio de baratas, nos apertávamos para vê-la nua em Não Se Faz Amor Como Antigamente. Os nomes provocavam a nossa imaginação, como Eu Dou O Que Elas Gostam, E O Que Elas Gostam Não É Mole, ou o clássico de Carlos Imperial, A Ilha das Cangaceiras Virgens.

Passei para o ginasial, mudei de prédio, na Praia de Botafogo. Recepcionamos novas turmas e conheci Carla, loirinha enigmática, linda como a vista do recreio, o Pão de Açúcar. Do meu tamanho. Nutri por ela uma paixão secreta. Quando ela passava, minhas pernas tremiam. A timidez era na mesma proporção que a minha admiração. Nunca ouviu a minha voz. Puro amor platônico. A maioria de nós compreendia o que significava o amor platônico e já vivera o seu, idealizara uma garota e sofrera por causa de uma timidez revoltante. Apesar de a maioria não ter ideia de quem foi Platão, nem de que seu amor foi definido na Renascença, baseado nos diálogos do filósofo, que apontavam que o amor mistura fantasia e realidade pelo ser perfeito, e a essência desse amor é a idealização. O amor platônico é comparado a um amor à distância, sem envolvimento e contato, que os inseguros alimentam especialmente na adolescência. Carla despertava o amor platônico em todo Colégio Andrews. Para nos confundir, ela era filha do nosso maior ídolo, Carlos Niemeyer, do Canal 100, telejornal que revolucionou a linguagem, era exibido antes dos filmes, e terminava com imagens em câmera lenta, com câmeras na beira dos gramados, de lances do último clássico de futebol, sob uma trilha sonora marcante. Queríamos Carla e conviver com a sua família, sermos convidados para ver os jogos de perto e termos em mãos aquele acervo. A ditadura apertou o cerco. Edu se exilou em Londres. Me mandava cartas perguntando de futebol e Carla. Eu mentia. Dizia que estávamos namorando. Que ficávamos na casa dela nos pegando, apesar dos 11 anos de idade.

Meu pai foi preso e morto naquele ano. Me fechei. Meu olhar ficou triste, como o de um cachorro molhado. Muitos passaram a me evitar. Afinal, eu era filho de um terrorista que atrapalhava o desenvolvimento do país, aprendiam com alguns pais, professores, liam na imprensa, viam nos telejornais. Ficava muito tempo sozinho no banco da escola. Aos poucos amigos, eu tentava explicar que meu pai não era bandido. A maioria não tinha ideia do que se passava nos porões. A censura e o milagre brasileiro cegavam. No meio do ano, minha família foi obrigada a sair do Rio. Na festa de São João, comuniquei a mudança. Muitos vieram se despedir. Eu estava numa barraquinha comprando doces, quando Carla se aproximou, para se despedir. Minhas pernas tremeram, como sempre. Fiquei sem ar. Ela disse o meu nome, Marrrcelo, com aquele sotaque carioca delicioso. Me beijou. "Você vai embora, Marrrcelo"? Eu não disse nada. Mais um amor era deixado pra trás. E por instantes perdoei o meu pai por não ter se exilado, como a maioria, para salvar a pele.

Quando voltei para São Paulo em 1974, conheci a versão paulista do pulgueiro do Jardim Botânico: o Cine Bijou, na Praça Roosevelt. O Jussara fechou em 1976. O Bijou virou um teatro. A internet nasceu. E a ingenuidade foi perdida. O saudosismo é a desculpa de quem não se transforma. O Brasil não era melhor nem pior do que é hoje. Era apenas outro País. Reencontrei Lucila no colégio de São Paulo. Não tinha mais os cachos. Continuava um encantada. Relembramos o passado. Para ela, eu também representava o primeiro namorado. Fui gentil. Mas havia uma baixinha do meu ano, misteriosa, secreta, apaixonante, de poucas palavras e muitos fãs. Que nem sabia da minha existência e nunca reparou nos meus olhos tristes. Reencontrei Carla no ano passado. Aliás, coincidentemente, na Livraria Argumento, do meu amigo Edu. Ela se apresentou. Sabia das cartas, em que eu mentia sobre o nosso amor. Não sabia que era tão idolatrada assim. Rimos das maluquices platônicas. São os cometas da memória.

Opinião por Marcelo Rubens Paiva
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