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Pequenas neuroses contemporâneas

Opinião|O Rio de Janeiro não continua sendo

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Atualização:

O Rio de Janeiro continua lindo

O Rio de Janeiro  continua sendo

O Rio de Janeiro fevereiro e março...

Depois que mexeram nas entranhas do crime do Rio, algo mudou.

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Há uma sensação de segurança que há muito não se sentia.

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Antes, na entrada da cidade, pela Via Dutra, as preces começavam.

Era nela que ocorria a maioria dos arrastões. Três carros com bandidagem armada reduziam a marcha até parar, interrompendo o fluxo. Desciam aos gritos com armamento pesado e granadas nas mãos. Afanavam bolsas, dinheiro, celulares. Eventualmente, uma vítima levava um tiro na cabeça, para que a autoridade ficasse explícita.

Levavam dez minutos. Tomavam as chaves dos primeiros carros e se mandavam, entrando pelas vias tortuosas da Baixada.

Mas se caso nada ocorresse na estrada, tinha ainda pela frente a Linha Vermelha, Via Expressa Presidente João Goulart, sob a mira e o humor do Complexo da Maré.

Exigia um exercício de autocontrole ao motorista: pensar positivo, seguir em frente, torcer para não ser mais uma vítima de uma bala perdida.

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E torcer os dedos, ao cruzar a blitz policial na via, que, dia e noite, dava as boas-vindas com rifles automáticos apontados.

Afunilavam os carros.

Não paravam suspeitos.

Preferiam paulistas em férias, para uma geral e mãos no capô, em busca de uma pequena irregularidade (a ponta de um baseado, um documento ou extintor vencidos), e garantir a féria da corporação.

Rosana, uma amiga, sofreu ameaças, depois de encontrarem uma semente de maconha no carpete.

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Foi obrigada a seguir uma viatura até o shopping mais próximo, em que PMs, com as senhas dos cartões dela, rasparam suas contas bancárias.

Cidadã indignada, denunciou o caso para a ouvidoria local, até descobrir que não existia nenhuma viatura com o número e a placa que decorara. Repórter da ISTO É, restou-lhe apenas a tarefa de denunciar nas páginas da revista o abuso.

O carioca teme a polícia tanto quanto teme a bandidagem. É constantemente vítima de extorsão.

Nas blitze da Lei Seca, que virou uma febre na cidade, por 50 pratas consegue se livrar de uma ida à "delega".

Se sobrevivíamos à Dutra e Linha Vermelha, havia os túneis, verdadeiras armadilhas para arrastões, emboscadas construídas pela natureza carioca.

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E mesmo se tudo desse certo, havia ainda os ratos de praia, as trocas de tiro, as balas traçantes e os arrastões nas areias.

Vivia-se com a rotina da violência como se fosse algo indissolúvel à essência da cidade mais linda do mundo; um pedágio a se pagar pela beleza.

Mas um simples blindado que ultrapassa qualquer obstáculo, e uma operação conjunta entre as forças de segurança, mudou a realidade.

A tal blitz da Linha Vermelha não está mais lá. Há paz nas ruas. O Complexo do Alemão e seu teleférico viraram ponto turístico. As escadarias da Igreja da Penha voltaram a receber pagadores de promessa. Até a pivetada do asfalto anda mais relaxada, menos ameaçadora.

A cidade se sente vitoriosa. A polícia anda orgulhosa. E já sabe qual o próximo passo: a tomada da Rocinha e Vidigal, comandadas hoje pela mesma organização criminosa.

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Aí, sim, a chapa esquenta. Cercada pela mata, será preciso uma tropa de 20 mil homens para ocupar o reduto mais lucrativo e bem armado do tráfico. E onde moram os serviçais da zona sul.

A pergunta não é se vai ocorrer, mas quando.

Já há investimentos imobiliários na favela, que esperam pela instalação de uma UPP (Unidade de Polícia Pacificadora) em breve. Até a elite carioca olha para a Rocinha com outros olhos. Como o preço dos imóveis da zona sul explodiram, e ameaça expulsar moradores tradicionais, é para lá que a classe média vítima da especulação pode se mudar. Para uma das melhores vistas da cidade.

Tomar o território é a palavra de ordem das forças policiais. O que não se entende é por que não o fizeram antes, se vimos pela TV que pareceu tão fácil.

Por um detalhe estúpido que agora se revela: a falta de blindados capazes de vencer os obstáculos instalados pela bandidagem. O Caveirão, anacrônico veículo blindado da polícia, com seus pneus de borracha, chegava só até a metade. Bastava atirar no pneu, ou uma barricada mais eficiente, e a tropa voltava.

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Durante décadas, viu-se a incompetência e a fragilidade desta batalha. Traficantes nos pontos altos atiravam em policiais nos baixos, que recuavam.

Apenas seis blindados da Marinha, com lagartas, não pneus, foram suficientes para tomar o que parecia impossível. E só agora o Bope vai ganhar o mesmo tipo de blindado, mais estreito que o Caveirão, o que possibilita entrar pelas ruelas das comunidades.

Outra explicação.

Foi uma operação constitucionalmente ilegal. Pois, para as Forças Armadas entrarem numa batalha contra o crime, é preciso que haja intervenção Federal no Estado.

Encontraram a brecha na lei: os carros foram apenas emprestados para a polícia carioca, o que botou a bandidagem para correr. Mas vai o Comando Vermelho entrar com uma ação no Supremo contra a Secretaria de Segurança do Rio de Janeiro, para contestar a legalidade da operação?

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Ela foi um sucesso, recebeu um inédito apoio popular, especialmente dos moradores das favelas, tomou o território, minou a engrenagem do crime.

Mas, em bom carioquês: Caraca, como não se pensou nisso antes? Como a polícia carioca não adquiriu blindados que subissem as favelas? Como não se mudou a Constituição, para permitir que se encerrasse um ciclo de décadas de império do tráfico, detonando a economia de uma cidade tão maravilhosa? Incompetência ou interesses?

Lamenta-se que parte da bandidagem negociou em ouro com a própria polícia a fuga. Que muitos traficantes saíram em porta-malas de viaturas policiais. Que o tráfico parece que já voltou a atuar.

Mas a fórmula para levar paz ao Rio foi descoberta.

Há vontade política e apoio popular.

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Algo mudou. E para melhor.

O carioca enfim sente que existe um Estado por trás dos impostos que paga.

E o turista se sente seguro para gastar sua bem-vinda moeda. Chegando pelo ar ou pela Dutra.

Para descobrir que o Rio de Janeiro continua lindo.

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Opinião por Marcelo Rubens Paiva
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