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Pequenas neuroses contemporâneas

Opinião|o que mamãe me ensinou

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Atualização:

San Francisco, 1995. Noite. Voltávamos na minha van de um restaurante do outro lado da baía.

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Adriana, minha ex-mulher, dirigia. Espalhados, eu, Amy, do New York Times, atual editora do caderno de cultura, Susan, da ABC, produtora de Oprah, Dick, escritor de Montana, que, quando bebia, dava em cima da Adriana, Amy e Susan, e David, da Newsweek, cara de nerd, excelente repórter que cobria o caso O. J. Simpson.

Eram meus amigos yankees da Universidade de Stanford, onde passamos um ano de licença dos nossos empregos para estudar graças a uma bolsa.

Amy havia largado o carro dela pelo caminho, numa estrada escura e deserta, para atravessarmos a Golden Gate no meu.

Ao estacionar na volta para deixá-la com Susan, observei seu pneu furado.

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Não havia uma alma viva a milhas.

As duas desceram.

Esperei que os dois samaritanos também descessem, para ajudá-las. Silêncio no carro.

"Aí, rapaziada, vão deixar duas moças sujarem as mãos?"

Eles me reprimiram com o olhar. A resposta de Amy, já abrindo o porta-malas, foi cáustica:

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"Você acha que duas mulheres não conseguem trocar um pneu? E nem precisam esperar, podem ir."

Não repliquei que eu fora educado de outra maneira. Apenas olhei para os dois colegas no banco traseiro, que indicaram: "Bora." O que mamãe me ensinou não vale mais.

Fomos.

Eu era o excêntrico sul-americano, onde os homens matam as mulheres impunemente, como dita a nossa fama, que não entendia as regras locais, reescritas e sufocadas pelo politicismo correto.

Não duvidava da capacidade de uma mulher americana montar um macaco, afrouxar as porcas, levantar um veículo, retirar o pneu furado, para substituí-lo por um estepe, nem quantificava os gêneros em sexo frágil e forte, apenas quis ser gentil e seguir a máxima que dita que oito mãos trabalham melhor do que quatro.

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Nos primeiros meses de Estados Unidos, meus foras eram constantes. As divergências culturais pareciam não ter fim. Especialmente no meio estudantil, que criou a contracultura e indicou o que era correto ou não ser dito, como se o controle pudesse modificar anos de diferenças que, por vezes, dão ares de preconceito.

Eu era visto como um exótico sexista. Costumavam perdoar os meus mal-entendidos, lembrando que eu viera das selvas e tinha, entrando pela janela, macacos e cobras. Com o tempo, gostei do papel de provocador e passei a exercê-lo com mais contundência.

Amy era uma espécie de representante do neofeminismo. Morou um ano na Califórnia sozinha, enquanto o marido continuou em Nova York. Nunca o vi por lá.

Era daquelas que diziam que as mulheres não devem ter filhos. Não apenas para interromper as carreiras, mas porque o mundo está abarrotado. Naquela época, as mulheres militavam nesta causa. Desconfiava-se que o planeta não tinha recursos para alimentar tanta gente.

Um ano depois, num restaurante de Nova York, com a mesma turma, Amy surpreendeu ao anunciar que estava grávida. Após brindes e uma dúzia de congratulações, o selvagem aqui perguntou se fora casual ou planejada.

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Na verdade, quis saber se ela mudara de opinião quanto aos suprimentos mundiais. Silêncio na mesa, até Susan esclarecer: "Marcelo, é uma pergunta íntima."

Naquela altura, eu já andava cheio de tantos foras, assumira a minha formação subdesenvolvida e apenas expliquei que, no meu País, era comum perguntarmos.

Nem sei se é. Mas comecei a usar uma das armas do politiques correto, o respeito pelas culturas estrangeiras, para justificar os meus foras.

+++

Richard era texano. Meu colega de uma matéria sobre literatura em Stanford. Boatos diziam que ele tinha ficado com a mais gata do campus, uma romena que trabalhava na biblioteca.

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Certa tarde, almoçávamos numa praça, quando ela passou e nos cumprimentou. Montou na sua bike. Alongou as pernas e a cintura para sentar. Estava de saia. E se foi.

Olhei para ele. No Brasil, eu diria: "Que gostosa..." Lá, eu disse: "Que mulher interessante..." E emendei: "Por que não deu certo entre vocês?"

Esperei todo o tipo de resposta: cheira mal; é irritantemente ciumenta; louca, pega no pé; é frígida; não ri das minhas piadas; ronca.

Não. A reposta pareceu outra piada: "Nossos valores não combinam." Valores?! Quem estava interessado nos valores daquela romena escultural?! Bem, talvez seja a forma de eles dizerem: "Não é tão gostosa assim." Ou são bem mais evoluídos e racionalizam os sentimentos mundanos.

Não foi à toa que a primeira coisa que fiz ao retornar ao Brasil foi escrever a peça E Aí, Comeu?, em que três amigos pseudo machões, um solteiro, um casado e um recém-separado, revelam que o discurso de mesa de bar sobre as mulheres são, no fundo, da boca pra fora, que as amamos e respeitamos, que somos influenciados por elas e as queremos sempre lindas.

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Opinião por Marcelo Rubens Paiva
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