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Pequenas neuroses contemporâneas

Opinião|O ator e a mentira

Passei a semana decorando o texto de ROURKE SONG, peça de uns 20 minutos que fiz no sábado numa tenda da Satyrianas.

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Atualização:

Eu já havia feito a mesma peça na edição do ano anterior. Mas não me lembrava do hilário texto do gaúcho Trasel.

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E me lembro que a exigência da direção, Fernanda D'Umbra, e do meu colega de palco, Marião Bortolotto, era que eu decorasse a peça com exatidão.

Por exemplo, meu personagem diz: "Verdadeiros valores masculinos da honra, franqueza, energia e competição..." Eu não poderia inverter "energia, franqueza, honra e competição", nem trocar "honra" por "honestidade".

Eles, como eu, defendem o texto, sabem que é a base do teatro, que há intenções, que se um autor escreveu daquele jeito, deve ter mil motivos. E não é um ator que vai cometer a heresia de mudá-lo.

No ano passado, declamei o texto sem errar uma palavra. Mas tinha uma cola dentro de um cardápio do Gigetto, que montei caprichadamente, tirando a página de massas e carnes e colocando o texto.

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Nada demais, já que os personagens estão numa mesa de bar, e bastava eu deixar o cardápio aberto. Insegurança. Falta de confiança na minha memória. Medo do branco tão famoso. Porém, nem consultei, apesar de consciente de que só decorara o texto mesmo no dia da estreia.

Neste ano, fui mais prudente. Uma semana antes, o texto já estava decorado. E todos os dias eu dava uma passada, no banho, no carro, até no dentista. No ensaio, não errei uma linha.

No entanto, descendo a Consolação, a caminho do teatro, numa última passada, voilà! Troquei as falas!

Circulei pelos bares em pânico. Não estava nervoso, mas ansioso. Uma parte de mim pensava, que bom que faço parte dessa mostra, quero mostrar, que venha logo, como demora pra passar o tempo... Outra parte dizia, o que você está fazendo aqui, ficasse na sua casa, vai ao cinema, por que tem que se meter em tudo?

Ator?! Você foi ator, péssimo por sinal, de teatro amador na década de 70. Era o galã da trupe, porque ninguém queria fazer os protagonistas. E você tinha cara de anjinho. Heróis daquela época não eram anti-heróis.

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Meu amigo MARCELO SPECTOR, autor e ator, anos de ANTUNES FILHO e CPT, me alertou: "Cuidado, a ansiedade é a pior coisa para um ator. Tira o oxigênio, afeta a respiração."

Beleza, conselho de amigo. Virei para o garçom e pedi um conhaque duplo. "Só tem Dreher". Serve... A essa altura, não importa a nacionalidade da bebida.

Fui reconhecer o palco. Acústica zero. Voltei e pedi outra dose dupla de conhaque. Meu celular toca. Marião, meia hora antes, quer passar o texto. Marcamos atrás do palco. Ele não tinha decorado no dia do ensaio, um dia antes. Mas todos sabem que o cara tem uma memória maior do que a praça Roosevelt.

Me aproximei e ele riu: "Já tá bêbado, né?!"

Sim, estava, mas tudo bem, o personagem é um bêbado. Passamos o texto. E não é que o cara se lembrou de tudo ali, minutos antes? Não erramos.

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Fomos para o palco. Casa cheia. O conhaque dissipara a ansiedade. Entrei no personagem. Vi amigos na plateia. Ignorei. Meu personagem é um sábio, um filósofo machista. Não se importa com que os outros pensam.

Marião, ou melhor, Enciclopédia entra, se senta ao meu lado e começa. Caramba. A voz do Marião é clara. Ele é ouvido até na praça da República. E me lembrei que no ano anterior reclamaram que parte do teatro não me ouviu. Beleza. Gritarei.

Rolou. Comecei a falar. Me ouviam. As falas vinham com clareza. Nenhuma linha do texto era esquecida. Eu dava pausas, refletia, escutava o que eu dizia, o que ele dizia, dava o timing das piadas. Fizemos.

De repente, no final, ele colocou um caco. Logo ele?!

Marião é dos autores que mais criticam o caco. Criticam os atores que colocam. Proíbe seus atores de caquearem. É contra. Acha que não se deve alterar o texto de um autor, concordando ou não com o que é dito. Na minha peça, A NOITE MAIS FRIA DO ANO, que ele faz, não colocou um caco.

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E lá estava ele, aos 40 minutos do segundo tempo, caqueando. Pra quê?

Passei a caquear também. Fui mais longe. Ironizei o cara. Me lembro que cheguei a falar: "Você, um cara de prestígio, que foi montado pelo Raul Cortês..." "Montado não, encenado!", corrigiu.

Antes que a peça virasse uma auto ironia, ele emendou: "Vamos voltar ao texto, se não a gente não termina nunca". Voltei. Rolou. Quem viu, viu. Depois, aquele vazio.

Quem sabe não entramos em cartaz?

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Alguém sabe explicar por que, de uns tempos pra cá, todos os manobristas, garçons, seguranças, porteiros, zeladores, ascensoristas e genéricos se despedem com a expressão "bom descanso"?

E qual é a resposta adequada, "espero ter", "Deus te ouça", "assim seja", "depois desse porre..." ou "só se rolar um Dormonid"?

E se você estiver com o amor da sua vida, depois de uma noite planejada- cinema, restaurante, clima, suspense, sedução, pignoli no penne, merengue de morango e tequila-, não responderia "que nada, cara, agora que eu quero me cansar"?

"Pra você também" não funciona, pois o sujeito ainda terá horas de trabalho e, depois, ainda vem a condução, que nunca chega na hora. Ele só descansará provavelmente ao amanhecer. Portanto, a resposta deve ser: "Pra você também, quando conseguir."

Alguém sabe explicar de onde vem a expressão "pois não", depois de chamarmos a atenção de manobristas, garçons, seguranças, porteiros, zeladores, ascensoristas e genéricos? "Pois não" o quê? "Pois não estou ocupado e irei atendê-lo"?

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Alguém entende como no Brasil o seis vira meia em números de telefone?

Sim, eu sei que vem de meia dúzia. Então por que o DDD de Aparecida, 12, não é "dúzia"? E de Angra, 24, não é duas dúzias? Por que só em números de telefone, bananas, laranjas e ovos o 12 é fator de divisão, numa sociedade regida pelo decimal? Bem, poderia ser pior. Lembre-se dos franceses, que falam "60 dez", para o 70, e "quatro vezes 20", para designar o simples 80.

O que dizer para os atores amigos ao final de uma peça de que você não gostou, não entendeu nada ou, pior, em que roncou? Sempre me fazem essa pergunta.

Todos nós temos um amigo ou parente envolvido em teatro. Os perfis são variados. Tem o pai viúvo, solitário, que encontrou ânimo, companhia e uma paquera não assumida (para os filhos) no grupo de teatro do condomínio.

Tem aquela tia ex-dependente química de anti-inflamatórios, eterna solteira, que não quer perder a juventude e faz teatro amador aos domingos no clube.

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Tem a filha hiperativa do amigo, que faz teatro infantil no grupo da escola, porque precisa aprender a ter limites.

Sem contar os que fazem aulas de balé, dança e expressão corporal para emagrecer, e se apresentam no fim de ano no espetáculo de conclusão num teatro reservado para a ocasião.

Há muitos tipos de teatro feito por amadores. Tem a encenação da festa de fim de ano da firma, do psicodrama, da brincadeira de Natal e da dinâmica de grupo.

E existe enfim o profissional (ou que se diz profissional), que convida os amigos e parentes para estreia do espetáculo falado em russo, sobre a condição humana e a condução dos trabalhadores, criação coletiva que levou três anos para ser levantada, graças ao dinheiro da família e apoio de duas pizzarias, exibido num espaço não-convencional: um buraco debaixo de uma ponte da Marginal Tietê, onde antes morava um morador de rua com seus nove cães vira-latas, que foi atropelado na via expressa por um clandestino levando fiéis para Aparecida, fato que saiu nos jornais e inspirou a diretora, que fez curso de teatro-socialista-bolivariano na Venezuela.

Os pertences do antigo morador são elementos de cena. Sim, o público se acomoda junto com os nove órfãos, que não arredam os pés no palco, digo, as patas.

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Ao final do espetáculo, minta. Não precisa dizer que amou, que mudou a sua vida, que consegue enfim entender a síntese entre o fazer aristotélico e o não.

Seja sutil e elogie um detalhe. Diga que os cachorros nem latiram. Que o público gostou. Que o espaço é realmente pouco convencional.

Minta sempre. Nós, artistas, somos muito sensíveis e vaidosos. Uma crítica estraga uma amizade. E você não quer deixar de ser convidado para um mico desses, que renderá muitos e-mails maliciosos com os outros amigos, quer?

Opinião por Marcelo Rubens Paiva
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